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Mês: Agosto 2012

3 de Agosto, 2012 Ludwig Krippahl

A fé, adenda.

A propósito do post anterior, o leitor rage comentou que «o apego às […] crenças, a convicção do seu valor, mesmo quando injustificado» é comum em todos os humanos, não apenas nos fiéis de alguma religião, mencionando também a « necessidade em ciência de realizar testes com grupos de controlo para estabelecimento de baselines, e/ou com ocultação, para prevenir interpretações oblíquas dos resultados» (1). Tem razão, e é um ponto importante, mas a minha intenção não era alegar que só quem tem fé é que está sujeito a este erro.

Alguma subjectividade é inevitável quando formamos uma crença, mesmo acerca de factos, porque temos de escolher onde pomos a fasquia do nosso cepticismo. Se é a uma confiança de 95%, como em muitos ensaios clínicos preliminares, ou a cinco sigma como na física de partículas, é uma decisão maioritariamente subjectiva. Mas há sempre um ponto a partir do qual o peso das evidências é suficientemente forte para reconhecemos que é erro defender uma opinião contrária. É um erro que todos podemos cometer; mesmo perante evidências fortes podemos ser pressionados por factores epistemicamente irrelevantes mas emocionalmente persuasivos. No entanto, é algo que reconhecemos como um erro e, por isso, em ciência temos a preocupação de o combater. Não só com que o rage mencionou, mas também formulando várias hipóteses em vez de considerar uma isolada, com a revisão pelos pares e a descrição cuidadosa dos métodos para confirmação independente, a crítica aberta e pública e assim por diante.

O que sobressai na fé religiosa é considerar que, para certas hipóteses acerca de um deus ou de escrituras sagradas, esse enviesamento que em tudo o resto se reconhece ser erro afinal é virtude. Quem não for criacionista percebe que acreditar numa criação em seis dias há poucos milhares de anos é teimosia fanática. Quem não for católico vê que é absurdo julgar o Papa infalível, seja no que for. Quem não for hindu ou budista reconhece que a crença na reencarnação não tem fundamento. Mas para o seguidor de uma religião manter as respectivas crenças é mais importante do que corrigir esse erro que é óbvio para os outros, e que até é óbvio para o próprio quando contempla as crenças dos outros.

1- A fé.

Em simultâneo no Que Treta!

3 de Agosto, 2012 Carlos Esperança

ATEUS, RELIGIOSOS E TASCAS

Por

ONOFRE VARELA

Não sou um habitual colaborador deste espaço, e talvez devesse sê-lo. Confesso que tenho um défice de espírito associativo que pode ser comparado com o défice de democracia na Madeira.

Será essa a razão de a minha colaboração neste espaço ateísta ser tão esporádica, e sempre com a ajuda do meu amigo Carlos Esperança para inserir o texto no espaço virtual, pois eu sou completamente analfabeto em computadores.

Porém, nos últimos dez dias, já publiquei dois textos… o que para mim é um record nestes tempos de competição olímpica!

Confesso que o segundo dos textos esteve a um nível sete furos abaixo de cão!… Aquele registo não é a minha maneira de escrever, mas foi o modo que me pareceu poder ser melhor compreendido pelo raciocínio elementar do destinatário específico e nomeado.

Se o meu muito querido amigo Ricardo Pinho algum dia disse que este espaço se parecia com uma tasca, referia-se, muito provavelmente, às discussões de rodapé que os assuntos publicados suscitam às várias sensibilidades de quem os lê. Reconheço que o meu último texto esteve ao mesmo nível!…

Mas devo dizer que não tenho absolutamente nada contra as tascas! Frequento algumas e gosto das companhias (que escolho), dos petiscos e dos copos de bom vinho que por lá são aviados. E algumas têm fado, o que para mim é sempre um prémio! Tal como sinto ser premiado com a banda de música no fim das procissões, que me remetem a memória para os meus 14 anos (nos finais da década de 50) quando estudei solfejo na “Banda Marcial de S. Cristovão”, em Rio Tinto, na expectativa de vir a tocar clarinete… o que nunca aconteceu, com muita pena minha.

Quando, neste espaço de ateus, e nos recados de rodapé, se “insultam” e “atacam” ateus e religiosos, eu tomo isso como um folclore próprio das discussões de porta aberta a quem queira botar faladura. É um espaço democrático do mais puro, embora possa ferir algumas sensibilidades. Mas é o preço da democracia, e é bom que o paguemos para continuarmos a possui-la.

Nessa conversa de “ataques e insultos”, também é bom que atentemos nisto: os ateus contestam, legitimamente, o conceito da divindade, mas aceitam e respeitam quem tem necessidade dele.

Quem tenha estabelecido a sua razão de viver no conceito de Deus, merece todo o respeito daquele que não precisa de Deus para coisíssima nenhuma. Os “religioso-dependentes” devem continuar a louvar Deus se não forem capazes de se libertarem da ideia, se precisarem dela para serem felizes. Pois que sejam felizes.

Seria bom que, entretanto, questionassem a ideia de Deus… mas isso é coisa que não deve ser imposta. É uma tarefa mental de cada cidadão, e uns serão mais capazes de a encararem do que outros. Tudo depende da idade em que o conceito lhe foi embutido no cérebro, e do hábito que terá, ou não terá, de raciocinar e de questionar.

3 de Agosto, 2012 José Moreira

O Governo ajoelhado

Ao fim de muitos – demasiados, para o meu gosto – anos, os governantes conseguiram chegar à conclusão de que uma grande parte das fundações existentes em Portugal não são mais do que viveiros de parasitas. Daí que tenha decidido efectuar uma avaliação das referidas fundações e, de acordo com as respectivas utilidades ou finalidades, vai reduzir as horas das mamadas podendo, até, secar a mama. Até aqui tudo bem, estou farto de pagar para alimentar parasitas.

No entanto, a notícia traz um texto que me deixa preocupado. Reparem, eu disse preocupado, não disse surpreendido. Então não é que  “Em relação às cerca de 100 que foram criadas ao abrigo da Concordata, o Governo refere que “vão ter um tratamento à parte”, mas garante que também vão ser todas objecto de análise e avaliação”.? E eu pergunto: à parte, porquê? Vão ser avaliadas pelo bispo ou pelo cardeal? Talvez pela Conferência Episcopal? Ou será que, porque convém, se faz a separação entre Igreja e Estado?

Eu não tenho dúvidas de que algumas instituições religiosas prestam benefícios inegáveis – embora acabem por dizer “nós demos” – mas não me parece que tenham de ter tratamento diferenciado. Porque muitas outras instituições não religiosas também prestam serviços de valor inegável.

Ou (man)temos o Governo de joelhos?

3 de Agosto, 2012 Luís Grave Rodrigues

Apocalipse

2 de Agosto, 2012 Ludwig Krippahl

A fé.

O Nuno Gaspar perguntou-me, com o seu jeito cristão gentil e educado, o que eu queria dizer quando afirmei que a fé «É uma meta-convicção, uma convicção no dever de estar convicto de algo» (1). Ora aqui vai.

O termo “fé” inclui várias coisas como crença, confiança, fidelidade, esperança e perseverança, que não são exclusivas daquilo que as religiões chamam fé. Não é preciso ter fé, nesse sentido religioso, para acreditar que o Sol é uma estrela, para confiar num amigo ou lhe ser fiel, para ter esperança que o PSD saia do governo ou para perseverar naquilo que se considera importante. O que caracteriza a fé, como os religiosos a entendem, é a crença de que certas crenças acerca dos factos têm valor por si. É uma meta-crença peculiar.

Não é peculiar só por ser meta-crença. No que toca aos valores, a crença no valor da crença é comum, e até esperada. Por exemplo, se eu acredito que ajudar os outros é uma virtude, é de esperar que também acredite que essa crença é uma virtude. Julgarei ter um defeito de personalidade alguém que acreditar que nunca se deve ajudar os outros, independentemente de os ajudar ou não. Em matéria de valores, as próprias crenças têm valor, bem como as crenças no valor das crenças e assim por diante.

No entanto, apesar de isto fazer sentido com valores é absurdo com os factos. Acreditar que o Sol é uma estrela não é uma virtude, só por si. É uma boa crença, assumindo que é verdade, mas se fosse falsa seria de rejeitar. A diferença é evidente quando consideramos uma situação que ponha em causa uma crença. Em questões de valor podemos ter um dilema constrangedor. Por exemplo, se só com uma tortura terrível é que podemos obrigar o terrorista a dizer onde escondeu a bomba antes que expluda, temos de escolher entre a crença de que é sempre mau torturar e a crença de que é sempre bom salvar vidas. Mas isto é constrangedor precisamente porque é uma escolha. Em matérias de facto as coisas são como são, e resta-nos apenas ajustar as nossas crenças ao que as evidências indicam. Descobrirmos que o Sol, afinal, não é uma estrela, seria surpreendente, seria uma revolução na ciência, mas não haveria razão para dilemas ou constrangimentos. Se as evidências mostrassem claramente que o Sol não era uma estrela o sensato seria mudar de crença e pronto.

O aspecto mais característico da fé é o valor que dá a certas crenças acerca de factos, como se fossem acerca de valores. Para a maioria das pessoas, encontrar evidências de que a Terra é mais antiga do que julgavam leva simplesmente a mudarem de crença. Para um fundamentalista evangélico não é assim, e evidências de que a Terra surgiu há muitos milhões de anos em vez de poucos milhares é fonte de um grande constrangimento porque a sua fé religiosa inclui a convicção de que deve acreditar numa Terra recente. Se acreditar que a Terra tem milhares de milhões de anos de idade está a ser infiel à sua religião.

É por isto que a fé é intrinsecamente contrária à razão e à ciência. Racionalmente, uma crença acerca da realidade só tem valor na medida em que corresponder aos aspectos da realidade que refere. E, epistemicamente, o valor de uma crença depende também da justificação objectiva para concluir que há tal correspondência. Por isso, a atitude correcta é estar disposto a mudar de crenças acerca dos factos sempre que as evidências o justificarem, sem problemas de consciência ou dilemas morais. A fé rejeita essa atitude de imparcialidade atribuindo a certas crenças acerca de factos um valor – até mesmo um dever moral – maior ainda do que o valor dado às evidências. Quem acredita por fé não precisa de evidências que suportem a sua crença nem liga a evidências que a refutem. Porque está convicto do dever de acreditar assim.

«Ora a fé é garantia das coisas que se esperam e certeza daquelas que não se vêem.» Carta aos Hebreus, 11-1.

1- Comentários em Treta da semana: o que eles querem sei eu.

Em simultâneo no Que Treta!

2 de Agosto, 2012 Carlos Esperança

Jesus abandonou a cruz e o altar (crónica pia)

Um dia o enorme crucifixo da velha igrejaganhou vida. Genufletida a seus pés uma beata atacava a quarta salve-rainha  enquanto, do lado direito, um pouco atrás, antes do transepto, outra beata debitava padre-nossos junto ao altar da Virgem Maria. É assim a força do hábito. Trocam-se as orações e os pedidos sem reclamação dos ícones nem reparo dos mendicantes. Ao mesmo tempo o padre vociferava latim e dizia a missa.

O senhor Jesus já por ali andava dependurado, há uns séculos, a suportar a crueza dos espinhos e o mau aspeto das chagas que nunca mais saravam. Enegreceu com o fumo das velas, suportou os odores de quem cuida melhor a higiene da alma do que a do corpo, ouviu gente em desespero e pedidos de vingança de almas danadas que lhe solicitavam o infortúnio dos inimigos.

Conheceu centenas de padres e numerosos bispos a quem nunca fez reparo pelo latim periclitante, a pobreza das homilias e a riqueza dos paramentos. Ouviu confissões eróticas sem mover a tanga, safadezas incríveis sem se ruborizar, misérias de vidas e vidas de miséria, sem um suspiro, um grito ou um vómito. A tudo o senhor Jesus se habituou, até às versões diferentes a respeito da sua própria vida.

Ouviu um bispo irado a condenar os jacobinos, outro a  amaldiçoar os judeus, e, todos, conforme as épocas, a execrar a Revolução Francesa, a república, o laicismo, a apostasia, a blasfémia e o preservativo.

A tudo o senhor Jesus assistiu, em silêncio, no bronze em que o esculpiram. Até um dia. Até ao dia em que o padre apostrofou os incréus que se afastavam do culto, faltavam à santa missa e se furtavam à eucaristia; admoestou as donzelas impacientes que não esperaram pelo casamento; ameaçou os casais que substituíam a castidade pelo preservativo e contrariavam os desígnios de Deus quanto aos filhos. Jesus despertou no preciso momento em que o oficiante explicava que naquelas rodelas de pão ázimo ia ele próprio, em corpo e sangue, pousar nas línguas ávidas de quem guardara jejum desde ameia-noite,bem confessado, melhor arrependido e excelentemente penitenciado.

Foi então que arrancou os cravos, deu um piparote na coroa de espinhos, abandonou a cruz e esgueirou-se por entre os devotos sem ninguém notar, nem a beata das salve-rainhas, nem o padre que administrava a partícula, nem os comungantes habituados a fechar os olhos. Ninguém reparou que no seu lugar ficou apenas um sinal mais em raiz de nogueira, com quatrocentos anos, aliviado do peso do freguês.

Jesus esgueirou-se pela porta principal e não mais foi visto.