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Mês: Agosto 2012

20 de Agosto, 2012 Carlos Esperança

O Papa também é guiado pelo Espírito Santo

Ex-mordomo do Papa afirma ter sido “guiado pelo Espírito Santo” para vazar documentos do Vaticano.

«Os documentos vazados apontavam caos de corrupção em negócios do Vaticano com empresas italianas, incluindo serviços superfaturados, e detalhavam rivalidades entre cardeais e conflitos a respeito da administração do banco do Vaticano.

De acordo com a denúncia judicial, o mordomo do papa afirma que sua motivação para o desvio desses documentos seria fazer uma “limpeza” na Igreja Católica, por ter visto “o mal e a corrupção em todo lugar da Igreja”. Ele disse ainda que quis, com a divulgação das informações, cortar o mal pela raiz, “porque o papa não estava suficientemente informado”».

Diário de uns Ateus – O mordomo usou como defesa a proposta defendida aqui. Infelizmente para ele o Vaticano não acredita no Espírito Santo e acusou-o de insanidade mental.

19 de Agosto, 2012 Carlos Esperança

E se a Associação Ateísta Portuguesa (AAP) convidasse os católicos para pensarem na fábula de Cristo e nas mentiras fundamentais da ICAR?

A Igreja Católica convida ateus e membros de outras religiões para uma missa de ação de graças pelos Jogos reservados a pessoas com deficiência, que se realizam em Londres de 29 de agosto a 9 de setembro.

“Esperamos que os atletas paraolímpicos do passado e do presente, católicos, cristãos, de outras religiões ou também ateus, estejam presentes na missa” marcada para 8 de setembro, afirmou James Parker, delegado da Conferência Episcopal de Inglaterra e Gales para a coordenação das Olimpíadas de 2012.

19 de Agosto, 2012 Carlos Esperança

A Igreja da Minha Aldeia (Crónica pia)

A igreja era a única construção sólida da aldeia. Os meus pais viriam a erguer uma casa de raiz para poupar os filhos ao frio que entrava pelas frinchas das paredes e aos pedaços de telha-vã que acontecia soltarem-se em noites de vendaval na casa que conseguiram. Eram poucas as janelas e os vidros que se partiam eram supridos por tábuas ou cartolina até chegar um novo, com tamanho aproximado, que acertasse no caixilho.

A escola viria a cair um dia, durante a noite, por milagre do Senhor, que soía colher os louros das desgraças que podiam ser piores. Se o milagre ocorresse durante as aulas era tragédia e caber-me-ia a perda precoce da mãe e do irmão mais novo, acompanhados de meia centena de crianças que ocupavam o espaço para onde desabaram três paredes e o telhado.

A Junta de Freguesia reduzia-se a um carimbo e um livro onde a professora escrevia e assinava a rogo de quem o devia fazer e não sabia. Pode dizer-se que a autarquia funcionou nas escadas das casas do Sr. António Bernardo e do Sr. José Simão, quando necessário; nos intervalos jazia em alguma gaveta, misturada com garfos e colheres de ferro ou de alumínio – já que o talher, com inclusão da faca para cada comensal, era desconhecido e supérfluo nesses anos e nesses sítios –, ou sobre a mesa por entre malgas e outra louça de barro. Julgava eu, então, que a Junta de Freguesia era o sítio onde se guardavam os boletins de voto dos vivos e mortos que no dia das eleições eram metidos na urna pelos eleitores que apareciam ou pelo Sr. António Bernardo quando faltavam, sobretudo os mortos, cujo exercício da vontade cabia ao presidente da mesa, sem pasmo nem reclamações.

A pobreza da aldeia só é imaginável, hoje, percorrendo países do terceiro mundo. Os ventres dilatados de várias crianças eram fruto de carências proteicas; e os olhos, que ameaçavam saltar das órbitas quando viam comida, denunciavam a fome que as consumia. Valeu a Cáritas, em meados do século XX, ter começado a distribuir leite em pó, farinha, queijo e marmelada. Só voltei a ver uma fome assim, então sem apoio de qualquer organização humanitária ou instituição governamental, em finais dos anos sessenta do século passado, em Moçambique.

Mas era da igreja que ia falar, da sua torre de dois sinos que tangiam desde a manhãzinha até às trindades, sempre aptos a anunciar as cerimónias litúrgicas e as orações que faziam correr aflitos os paroquianos, não fosse o atraso fazer perigar o destino da alma ou atrair a recriminação do padre, ou mesmo do sacristão e de algum zelador mais beato, por se julgarem investidos do prolongamento da autoridade eclesiástica e se anteciparem na admoestação.

A igreja era assaz grande para nela caber a população da paróquia e sobrar espaço. Podia proceder-se ao recenseamento durante a missa se lhe acrescentassem o meu pai e o Sr. Morgado, cujas ausências me intrigavam e algumas vezes me afligiram quando o Sr. padre, na homilia, verberava ateus, mações, comunistas e judeus e os condenava às perpétuas penas do Inferno, onde só havia choro, ranger de dentes e azeite fervente onde as almas frigiam eternamente.

Durante a catequese, que era ministrada à noite, aprendia-se a doutrina da única religião verdadeira, a que conduzia à salvação da alma, e decoravam-se as orações ensinadas num autêntico curso de terrorismo religioso que induzia terrores noturnos e intensa xenofobia nas pobres crianças. É difícil perceber como duas catequistas tão doces e analfabetas tinham uma imaginação tão fértil e perversa.

A Igreja era varrida uma vez por semana e lavada de longe em longe por mulheres que mudavam as toalhas do altar e a farpela aos santos, esfregavam as pedras onde os devotos se ajoelhavam e limpavam as paredes com um pano húmido na ponta de um enorme varapau. A pia de água benta era lavada com a vulgar água da fonte de mergulho e sabão, depois de acesas discussões teológicas para tentar concluir se a água benta que nela restava podia deitar-se fora sem cometimento de pecado ou se o uso do sabão não seria sacrilégio perante a bênção dessa água, que até a alma lavava. Valia a decisão da senhora Deolinda, que, sem conversas, alheia a preocupações metafísicas, encharcava um pano seco e o torcia na rua a escorrer água negra do lodo depositado e que a bendição não lograra tornar alvo, até enxugar a pia e proceder, depois, à lavagem com água e sabão azul.

As festas canónicas eram no Verão. Talvez o frio não desse saúde aos santos que saíam em passeio a ver a aldeia e a arejar ao som de cânticos, sem música, que a banda ia de graça mas era preciso alimentar os músicos e matar-lhes a sede. Vinha um pregador de fora, pago a peso de ouro, para exaltar a santidade do bem-aventurado que servia de pretexto à festa e, só isso, era um sério encargo para os paroquianos e preocupação para os mordomos.

Assisti a sermões empulgantes. Não, não eram empolgantes, como o leitor já pensará, imaginando-me um prevaricador ortográfico que deixou escorrer a nódoa para o pano da crónica. Os sermões, a missa, o terço e as novenas eram deveras empulgantes por causa do calor e dos animais com que as pessoas conviviam – fora da igreja, claro.
A fé e as orações eram retribuídas com pulgas cujas picadas espalhavam o prurido, alheias ao ar empolgado dos devotos perante as palavras rebarbativas do pregador, possuídos do mesmo êxtase místico com que ouviam o latim da missa, que sempre os maravilhava.

Talvez, quem sabe, esse deslumbramento tenha guiado Bento XVI no regresso ao latim.

 

 

19 de Agosto, 2012 Carlos Esperança

Jesus da vida airada

Por

Kavkaz

Todos se lembram da história infantil da formiga e da cigarra. Enquanto a formiga trabalhava e reunia comida para o inverno, a cigarra cantava e passeava pelo bosque todo o verão. Para a cigarra o que importava era aproveitar a vida, e aproveitar o hoje, sem pensar no amanhã. Para quê construir um abrigo? Para quê armazenar alimentos?

Depois chegou o inverno e o frio. A cigarra sem abrigo e não tendo comida guardada foi, desesperada, bater à porta da casa da formiga que lhe deu uma sopa quente e a agasalhou…

O que será que esta história infantil pode ter a ver com Jesus Cristo? Tem a ver com as formas de pensar que as pessoas adoptam. Uns comportamentos são mais parecidos com os da formiga, outros pensam viver mais ao modo da cigarra.

Como pensava Jesus viver a sua vida? Ele pensava vivê-la como a cigarra. Ele juntava os amigos, os apóstolos, as mulheres, pessoas e andava caminhando e falando do que entendia. A Bíblia não relata que Jesus tivesse qualquer profissão ou emprego.

Os grupos de pessoas que acompanhavam Jesus manifestavam inquietação por aquele modo de viver. Não lhes augurava um bom futuro viverem daquela maneira. E Jesus afirmava um discurso parecido com o da cigarra:

«E por que vos inquietais com as vestes? Considerai como crescem os lírios do campo; não trabalham nem fiam.» Mt: 6, 28.

«Não vos aflijais, nem digais: Que comeremos? Que beberemos? Com que nos vestiremos?» Mt: 6, 31.

«Não vos preocupeis, pois, com o dia de amanhã: o dia de amanhã terá as suas preocupações próprias. A cada dia basta o seu cuidado.» Mt: 6, 34.

De Jesus relata-nos a Bíblia: «Aí está um glutão e bebedor, amigo de publicanos e pecadores!» Mt: 11,19.

Jesus da vida airada, aos trinta e três anos, ainda queria a ajuda do paizinho!

18 de Agosto, 2012 Luís Grave Rodrigues

Crucifixo

17 de Agosto, 2012 José Moreira

A confissão (excertos)

(…)

A velhota acabou por sair. Pelo tempo que demorou, não devia ter rezado mais que dezassete ave-marias, provavelmente mais dois padre-nossos, presumivelmente ainda uma salve-rainha, mas isto já são conjecturas. A senhora saiu e, já no adro, ainda se voltou para o edifício, fazendo um último sinal da cruz, em jeito de quem se despede de Deus, esquecendo-se de que Ele está em toda a parte e, portanto, não há hipótese de nos vermos livres d’Ele. Seguidamente, depositou uma moeda de vinte e cinco tostões[1]  na suja mão estendida do pedinte, enquanto murmurava seja em desconto dos meus pecados. Mesmo sem cuidar de saber a quantos e quais pecados corresponderia o desconto equivalente a 2$50[2] , a idosa afastou-se e acabou por desaparecer na esquina à esquerda, e o largo ficou quase deserto, e este quase não aparece aqui fortuitamente, o largo só estaria deserto se não houvesse ninguém nele, ora, nós sabemos que havia, pelo menos, uma pessoa, qual seja o vosso desconhecido, e digo vosso com toda a propriedade, porque eu, autor, sei perfeitamente de quem se trata, você, leitor, é que ainda não sabe, mas não se preocupe, que esse seu desconhecimento tem os minutos contados. Bastantes, certamente, mas contados mesmo assim.  Agora, olhando assim a igreja, esta parecia-lhe bem maior do que quando, ainda na “Taberna do 21”, sorvia lentamente a cerveja loira – pálida e loira, muito loira e friae o seu lábio tristíssimo sorria. Sentiu um certo temor. O calor apertava, e o nosso jovem desconhecido, porque de um jovem se tratava, digamos que ainda não tinha atingido a idade para poder ser eleito presidente da república, embora pouco faltasse, transpirava.

Decidiu-se.

Entrou.

Cá ao fundo, de costas para a porta, e para a “Taberna do 21”, o padre Cristiano lia o breviário. Soletrava, para melhor o compreender. Saboreava-o, estão a ver?

O desconhecido e, ainda por cima, forasteiro, foi-se aproximando, lentamente, até chegar junto do sacerdote:

— Padre eu quero confessar-me,

“Meu Deus, como Tu és grande”, pensou o padre – Cristiano, de seu nome – para com os botões da sotaina, erguendo os olhos para um enorme crucifixo que dominava a nave central (e única) da capela. “Eis uma ovelha tresmalhada que quer regressar ao Teu rebanho. E uma ovelha ranhosa”, concluiu depois de observar de relance o jovem, que fungava ferozmente.

— Então meu filho, que tens para me dizer? Podes confessar-te mesmo aqui, que a igreja está vazia, não há necessidade de irmos para o confessionário.

Suspendeu-se por momentos, e prosseguiu:

— Um dos requisitos para uma confissão bem-feita, já tu estás disposto a cumprir, que é a confissão de boca. Mas há outros requisitos que terás de preencher, sem os quais a confissão não terá qualquer valor. São eles o exame de consciência, a dor de coração, o propósito firme de emenda e a satisfação de obra. Queres que te explique em que consistem estes requisitos?

— Não haverá necessidade, padre. Quando andei na catequese o padre Gaudêncio explicou-me isso tudo muito explicadinho.

— Então, muito bem.

O padre Cristiano compenetrou-se por momentos, e deu início ao ritual da confissão:

— Ave Maria Puríssima…

— …Sem pecado concebida. Abençoe-me padre, porque pequei.

— Quando foi a última vez que te confessaste?

— Fiz a minha última confissão quando tinha dez anos, aquando da comunhão solene.

— Muito bem, meu filho. E quais são os teus pecados?

O confessando titubeou, visivelmente perturbado:

— Padre, eu não sei como dizer, tenho vergonha… é só um pecado, mas é um pecado tão grande…! Hesito, tergiverso, não sei se terei perdão… será que vou ter uma grande penitência?

— Meu filho – disse o padre – a penitência será sempre em função do, ou dos pecado ou pecados cometido ou cometidos. Depois, levarei em conta as circunstâncias agravantes, atenuantes e dirimentes. De qualquer modo, a indulgência é sempre possível desde que haja propósito firme de emenda e arrependimento. Deus é grande, e infinita é a Sua misericórdia.

Padre Cristiano, porém, começava a ficar em suspense. Não era costume haver tantas hesitações, nas confissões. Começou a perder a longanimidade que, diga-se em abono na verdade, nunca tinha sido muita e que ia minguando na razão directa do cumprimento dos aniversários. Que já eram muitos, diga-se de passagem, os que tinham ficado para trás e, o que é mais grave mas terá de ser dito, o padre Cristiano, quando perdia a paciência perdia, também, por efeito directo, a capacidade de cuidar da língua, adoptando expressões pouco católicas e nada cônsonas com a sua condição pastoral:

— Mas, afinal, que raio de pecado é esse?

O desconhecido parecia não saber o que fazer às mãos. O tempo escoava-se lentamente, esvaindo-se em gotas que os ponteiros do relógio da torre da direita (de quem entra, entenda-se) iam sublinhando.

— Padre, eu roubei.

A igreja pareceu ruir. O silêncio, absoluto, tornou-se completamente inaudível. No relógio da torre, o ponteiro dos minutos hesitou alguns segundos antes de se decidir avançar mais um espaço. Da “Taberna do 21” chegava um ténue mas inconfundível cheiro a pataniscas de bacalhau, enquanto o padre empalidecia, a face a tornar-se lívida, em oposição à sotaina.

— TU, meu filho, ROUBASTE?! Mas roubaste o quê?

— Um relógio.

— Um quê????

— Sim, padre, um relógio. Roubei, mas não consigo aguentar mais. Roubei um relógio, mas ele queima-me, ele pesa-me, ele alucina-me, por favor, padre tome-o, fique com ele, eu não o aguento mais na minha posse, fique com ele, peço-lhe, suplico-lhe, imploro-lhe, rogo-lhe, reitero, depreco, solicito-lhe, peço deferimento.

O padre – Cristiano, de seu nome, não sei se já tinha dito – sobressaltou-se, como o Demónio ao ver a cruz. Nunca tinha ouvido, em confissão, um pecado daqueles! Lá na pequena freguesia, ninguém roubava nada a ninguém, pelo que as confissões eram uma pasmaceira de todo o tamanho. Nunca iam além de umas facadas no matrimónio, pronto, já se sabia que a Hermínia do Isildo andava metida com o Rodrigo Farroco, a mulher deste tinha feito uma escandaleira das antigas uma das vezes que a Hermínia foi à fonte buscar água, houve puxões de cabelos e tudo, enfim, de vez em quando lá havia umas sacholadas por causa da rega, de outra vez era o Libório que insultava o Germano porque a vaca da mulher ia pastar no lameiro dele, isto é, do Libório, o Germano bem argumentava que a vaca não lhe pertencia, pertencia à mulher, porque estavam casados com separação de bens, Eu não tenho nada a ver com o que a vaca da minha mulher faz, mas nada adiantava, Tu é que tens de ter mão na vaca da tua mulher, Eu?! Era o que me faltava, eu tenho trabalho que chegue para cuidar do meu boi, a partir dali era tudo insultos, filho desta, filho daquela, o padre Cristiano nunca percebeu lá muito bem o que é que o boi do Germano tinha a ver com aquilo tudo, o boi do Germano era manso, não se metia com ninguém nem incomodava, mesmo com os cornos do tamanho que tinha, já que era de raça barrosã, enfim, tricas sem grande importância, mas que davam sabor à vida e animação ao pequeno burgo, e que eram desfiadas no confessionário como se de contas de um rosário se tratasse, era o que ia valendo para quebrar o quotidiano medíocre da freguesia, pouco maior que uma pequena aldeia, e que ia permitindo ao bom padre Cristiano conhecer o ambiente da freguesia e ir controlando os fregueses. Agora, roubar um relógio?! Nunca se tinha ouvido tal desconchavo.

Padre Celestino olhou mais atentamente para o jovem

— Tu não és daqui, pois não?

— Não, padre. Sou dali, de Ilhós da Veiga.

— E porque vieste confessar-te aqui? Não achas estranho? Ou dar-se-á o caso de o meu colega já não ter mais absolvições para te dar? Sim, porque tudo tem um limite e as absolvições não são excepção, se um paroquiano passa a vida a pecar, é mais que certo que, a partir de certa altura, já não há absolvição possível. Faz-nos falta um cadastro a nível nacional, para ver quem são os reincidentes…

— Não, padre, não se trata de nada disso. Eu é que não tive coragem… Ali em Ilhós da Veiga toda a gente se conhece, e não queria que as pessoas começassem a desprezar-me e a olhar para mim com desconfiança…

— Tu não estás bom da cabeça, pois não? Já ouviste falar no segredo da confissão?

— Já, padre, já ouvi; mas também sei que a Henriqueta, a filha do Ambrósio, fez um desmancho, e ela não o contou a mais ninguém, mas já toda a gente sabe…

— Bom, bom, bom – atalhou o padre. – Isso não é para aqui chamado. Onde é que tens o relógio?

— Tenho-o aqui, padre. Fique com ele, por favor. Olhe que é a maneira de me sentir melhor. Quer vê-lo?

— Nem penses! Nem quero olhar para isso. Esse objecto é fruto do pecado, nem o quero ver.

— Mas… porque é que o padre não fica com ele?

— Nem penses! Nunca! Que diabo… Ia agora ficar com o relógio? E ir de cana[3]  como recepta?[4]  És besta, ou fazes-te?

Subitamente, apercebeu-se de que a linguagem que estava a utilizar não era a mais correcta. Parou por moimentos, respirou fundo para se acalmar e prosseguiu:

— Tens mas é que o devolver à vítima. Isso sim, é prova de arrependimento – prosseguiu, numa linguagem já mais católica. – Conheces a pessoa, ao menos?

— Sim padre. Conheço.

— Óptimo! Então, livra-te desse pecado. Devolve o relógio imediatamente!

— Desculpe, padre, não sei se conseguirei… Pegue no relógio, padre, fique o senhor com ele, que certamente terá meios de o fazer chegar às mãos do legítimo dono. Estou certo de que durante a homilia, se disser que foi encontrado um relógio alguém se há-de acusar…

— Meu filho, tem paciência, mas não posso aceitar. És tu quem terá de o devolver ao dono, pois só assim mostrarás a Nosso Senhor o teu arrependimento, aquilo que, na confissão, se chama dor de coração. Sem essa dor de coração, não há absolvição possível, meu filho.

— É que há um problema, padre, esquecia-me de lhe dizer: eu já tentei, mais do que uma vez, devolver o relógio ao dono.

— Ah! Graças a Deus! E o que foi que o dono disse?

— Pois, o dono disse que não queria o relógio. Não aceitou.

— Não aceitou? Não aceitou? Mas como não aceitou? — Custava-lhe a aceitar a explicação. Hesitou, algo aturdido: como é que era possível?

— Espera aí: tu estás a tentar dizer-me que furtaste o relógio, tentaste devolvê-lo ao dono, e ele não aceitou? E queres que acredite nisso?

— Padre, vai ter de acreditar. Que Deus me fulmine já com um raio, se estou a mentir!

Deus não fulminou o anónimo confessando. Aliás, no céu, que se mantinha límpido e esplendoroso, nem sequer se vislumbrava nuvem, miserável que fosse, donde pudesse vir raio que partisse o pecador, pelo que só se pode concluir que estava a falar verdade. Conclusão a que também o padre Cristiano chegou sem grande esforço:

— Bom, isso é tudo muito estranho, mas…Se não aceitou, não há pecado… Ora vejamos: tu gamaste  o relógio; tentaste devolvê-lo e o gajo não aceitou. Foi? – interpelou o sacerdote numa linguagem mais do que discutível, considerando a sua posição pastoral.

— Foi, padre. Já lhe jurei que sim, e volto a jurar, se for preciso.

— Sendo assim, é mais fácil dar-te a absolvição. Se o lesado não quis o relógio de volta, significa, só, que se trata de uma alma nobre. Perante isso, Deus Nosso Senhor só tem uma coisa a fazer, que é perdoar-te também.

–…E posso ficar com o relógio?!

— Sendo assim, podes. Não vejo qualquer problema. Agora, repete comigo: Senhor Jesus, Cordeiro de Deus que tiras os pecados do mundo, reconcilia-me com o Pai pela graça da Espírito Santo; purifica-me de todos os meus pecados e faz de mim um homem novo. Amém.

O jovem repetiu a ladainha e o padre deu por finda a confissão:

— O Senhor perdoou os teus pecados. Vai em paz – ao mesmo tempo que traçava, no ar, o sinal da cruz.

O desconhecido levantou-se lentamente. Esfregou os joelhos doridos e beijou a mão do sacerdote.

— Deus o abençoe, padre.

Molhou os dedos na pia de água benta e saiu. Sem mais um pio.

O silêncio voltou ao templo, o tempo foi-se passando.

O santo padre – “santo”, era considerado pelos paroquianos – que tinha mergulhado novamente no breviário, breve se alheou do mundo circundante. O caso do jovem desconhecido foi remetido para o arquivo dos casos encerrados, mesmo sem despacho da hierarquia. O silêncio absoluto regressou à Casa de Deus.

Ouviu que os sinos da igreja tocavam às Trindades. O escuro da noite já ameaçava cair, a “Taberna do 21”, religiosamente começava a animar-se, como era costume todos os dias. Que horas seriam, ao certo? Meteu a mão ao bolso da sotaina, buscando o relógio… Não estava lá! Nem no outro bolso! Nem no outro! Nem no outro! Nem no…

— Valha-me Deus! Mas onde é que eu deixei o relógio? – perguntou aos botões da sotaina que, naturalmente, se mantiveram mudos. Aliás, nem outra coisa seria de esperar.

Entrou em ebulição mental. Diria, talvez, em erupção… Temeu começar a comportar-se como uma truta epiléptica e elevou aos céus uma silenciosa oração, pedindo ajuda divina para manter a calma. Sem grandes resultados, diga-se de passagem, mas isso nem é surpreendente. Deus é para rezar, mas quem quiser acalmar-se toma “xanax”, que é calmante e, além disso, ainda é palíndromo, coisa de que nem todos os medicamentos de podem gabar. Deus não é medicamento, aliás nem sequer é palíndromo, nada de blasfémias. Tentou reconstituir os passos dados desde a última vez que viu o relógio, assim a modos de quem vê um filme pela segunda vez. Já tinha experimentado essa técnica por várias vezes, a conselho da Alzira, a velha governanta, e sempre com bons resultados. A idade não perdoa, já naquela altura não perdoava, e o padre Cristiano era useiro e vezeiro em esquecer-se dos objectos o que, aliás, nem fazia de propósito, mas coisas há que o comum dos mortais não consegue controlar inteiramente, e a mente é uma delas. “Vamos a ver: a última vez quem vi o relógio foi antes de almoçar. Ou teria sido já depois, para ver se já eram horas do terço? Mas, a que propósito é que eu iria tirar o relógio do bolso da batina, se ele até estava preso com a corrente de ouro? Ná… devo tê-lo deixado em qualquer sítio… Mas onde, valha-me Deus, onde?

 

In “O Retrato de Judite” – José Carlos Moreira, Casa das Letras, 2005


[1] Moeda existente à época valendo dois escudos e cinquenta centavos. Equivaleria, aproximadamente, aos actuais €001,5.

[2] Era assim que se escrevia, em números; em letras, podia ser “dois escudos e cinquenta” vinte e cinco tostões”, ou “cinco coroas”.

[3] O mesmo que “ir dentro”,” ir de saco”. Ir preso.

 

[4] O mesmo que “intruja”, “invejoso”. Receptador.

17 de Agosto, 2012 Carlos Esperança

O 10 de junho, o ridículo e a Senhora de Fátima

Não vou falar da Senhora de Fátima, a única personagem que tem mais heterónimos do que Fernando Pessoa. Vou referir-me aos exóticos edis da Câmara de Ourém, aos seus anseios autárquicos e à frivolidade das reuniões camarárias.

Segundo o jornal «O Mirante», a edilidade de Ourém, “quer comemorações do Dia de Portugal em Fátima”. O delírio místico, próprio da região, partiu de um edil do PSD que pretende as referidas comemorações, em 2013, na Cova da Iria, um terreno de pastorícia que as cambalhotas do Sol e as visões da Irmã Lúcia transformaram num lucrativo local do setor terciário, quer no sentido da ciência económica quer na prática litúrgica, graças à promoção do terço.

A justificação baseou-se na importância «que o santuário de Fátima tem para Portugal e para o mundo», justificação que colheu a unanimidade do executivo municipal (PS/PSD/CDS) e levou à decisão de manifestar tão pia vontade ao Presidente da República.

Com tal argumento certamente se justificariam muitos outros eventos, nomeadamente de natureza desportiva, dadas as dimensões do santuário e as infraestruturas hoteleiras.

 

O 10 de junho, há muito que perdeu o sentido republicano, com que o feriado foi criado, para se converter na lúgubre evocação da cerimónia com que o salazarismo glorificava a guerra colonial. O atual PR acedeu a ser presidente da comissão de honra da canonização de Nun’Álvares depois daquele milagre que o guerreiro medieval obrou no olho esquerdo de D. Guilhermina de Jesus, curando-a da queimadura provocada pelos salpicos do óleo fervente de fritar peixe, mas a República, apesar da ofensa da canonização ao herói de Aljubarrota e das genuflexões do PR, continua laica.

Será que os trogloditas que formam o executivo camarário de Ourém, habituados a andar de joelhos e a rastejar, sabem o que significa a laicidade do Estado?

Hoje pede-se que as comemorações do Estado se realizem num santuário mariano, quiçá à luz das velas, com o PR a ser recebido pelo batalhão de servitas de Fátima e com uma charanga de cónegos a tocar o Avé. No futuro assistiremos à procissão do «Adeus» a sair da Assembleia da República.

16 de Agosto, 2012 Carlos Esperança

O ‘acordo de Hamburgo’…

Por

E – Pá

O Land (Cidade-Estado) de Hamburgo concluiu, na passada 3ª. feira, um acordo com os representantes muçulmanos residentes visando a sua integração social, cultural e religiosa na comunidade hamburguesa. …”. link.
Uma interessante notícia vinda da Alemanha dirigida pela Srª. Merkel que, recentemente (em Outubro 2010), anunciou o fim (ou o falhanço) do multiculturalismo… link.


O tempo dirá da importância deste acordo.