Equívocos, parte 15. Fundamental e dramático.
O Alfredo Dinis explicou porque julga ser «Equívoco fundamental» do ateísmo «estar estruturalmente impedido de […] erradicar a religião»(1). Alegando que os ateus escrevem com «uma extrema agressividade», publicam muitos livros, dizem que a religião faz mal e acham que «os crentes são todos uns grandes ignorantes [e] a inteligência está toda do lado dos ateus», o Alfredo conclui que «A missão dos não crentes é só uma: anunciar a boa notícia de que Deus não existe» com o objectivo de «erradicar a religião». Como, segundo o Alfredo, as críticas dos ateus ou são irrelevantes ou são positivas para “a religião”, é um equívoco dos ateus criticar publicamente a religião «porque pensando que estão a destruir a religião com as suas críticas, a sua acção acaba por ter um efeito positivo ou neutro». Isto, acrescenta o Alfredo, é «objectivamente dramático»(2).
Antes de passar às premissas, começo pela confusão principal. “Ateu” designa quem rejeita as alegações sobrenaturais de todas as religiões, para o distinguir do crente, que rejeita as alegações sobrenaturais de todas as religiões menos uma. Isto não tem nada que ver com escrever livros, blogs, ou dizer que a religião faz mal. Se eu deixasse de escrever ou falar sobre religião continuava a ser ateu. Seria um ateu calado, mais ao gosto do Alfredo, mas um ateu à mesma. Portanto, a alegada incapacidade desta contestação “beliscar a religião” não poderia ser um equívoco fundamental do ateísmo. No máximo, seria uma falha de comunicação.
No entanto, a premissa de que os argumentos dos ateus nunca “beliscam” a religião é difícil de aceitar. Desde os posts do Alfredo a alegar que não há nada aqui para ver às homilias do José Policarpo apontando o ateísmo como «o maior drama da humanidade»(3), há muitos indícios de beliscadela. Além disso, “religião” é um termo demasiado vago. Julgo que o Alfredo concorda que muitos argumentos científicos, que não invocam qualquer deus, beliscam dolorosamente as teses religiosas dos criacionistas. Ou as teses de que Atena nasceu da cabeça de Zeus, o deus escaravelho Khepra rebola o Sol pelo céu e Thor causa trovoadas com o Mjolnir. Basta um pingo de cepticismo para pôr também em causa muitas teses centrais da religião do Alfredo, desde a ressurreição de Jesus à assunção de Maria, infalibilidade papal ou a convicção de que só homens, e nunca mulheres, podem deter o poder mágico de benzer, transubstanciar e celebrar missas. A insistência numa vaga “religião”, sem nunca defender dogmas católicos em detalhe, faz-me suspeitar que o próprio Alfredo teme um beliscão.
Segundo o Alfredo, os ateus julgam que «os crentes são todos uns grandes ignorantes [e que] a inteligência está toda do lado dos ateus». Mais do que falso, isto é absurdo. Se fosse essa a minha opinião de todos os crentes não discutiria com nenhum deles. Não valeria a pena. Faria apenas o que faço com alguns criacionistas, que é criticar os seus disparates sem encetar grandes diálogos com eles, visto ser claro que não querem considerar os factos nem ter conversas inteligentes. Com o Alfredo passa-se o contrário; só esta conversa sobre os equívocos já vai no décimo quinto post. Há pessoas com quem é possível ter conversas inteligentes, outras com quem não se consegue, e isso não é função de ser crente ou descrente. É até muito mais uma questão de atitude do que de formação académica ou inteligência.
O Alfredo também está enganado acerca dos objectivos de discutir religião e ateísmo. O que me motiva, principalmente, é gostar de escrever o que penso, seja sobre copyright, astrologia, criacionismo ou catolicismo. O facto de os meus posts, por si só, não levarem a Maya a abandonar o negócio, o Mats a rejeitar o criacionismo ou a RIAA a aceitar a partilha de ficheiros não torna a minha liberdade de expressão num equívoco. Também não fico desmotivado por o Alfredo continuar padre depois de ler isto.
Em geral, os ateus não visam demover os crentes mais ferrenhos ou que tenham muito investido na defesa de alguma crença. É uma tarefa inglória e pouco motivadora. A motivação principal é que a escrita e o diálogo valem por si. Somos uma espécie exímia a comunicar e tiramos grande prazer disso, mesmo quando não traga consequências práticas. Quanto ao esforço de persuasão, esse é dirigido aos outros. Para qualquer crença, além dos defensores acérrimos e dos opositores declarados há uma maioria silenciosa que faz toda a diferença. Escrevo o que escrevo pelo prazer do diálogo, pelo alívio do desabafo e, também, para mostrar aos indiferentes que uma crença falsa não merece respeito só por fé ou insistência. É isto que o Alfredo confunde. Acabar com a fé religiosa não é um objectivo viável, mas é viável diminuir a reverência que a maioria concede a certos disparates só por virem de religiões, tradições ou fanáticos. E isso, parece-me, os ateus têm conseguido. Por exemplo, de Pio XII a Bento XVI, em seis décadas, nota-se uma grande diferença na arrogância com que os dirigentes católicos podem alegar representar o criador do universo e conhecer os seus milagres e mistérios.
A ideia destes textos não é converter o Alfredo. Tampouco me importa o que o Alfredo acredita. O que pretendo com isto, além do gozo que me dá a escrever, é contribuir, por pouco que seja, para que as alegações de bruxos, padres, videntes e afins sejam avaliadas apenas pelo mérito que tiverem em vez de aceites como autoritárias simplesmente por virem de quem vêm. Isto não me parece um equívoco. Parece-me um objectivo meritório, mesmo que não seja possível atingi-lo, porque sem um esforço constante neste sentido só vamos escorregar no sentido oposto. O importante não é que a sociedade acabe com as religiões e demais superstições. O que importa é que a superstição não nos impeça de ter uma sociedade livre, justa e esclarecida.
1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo
2- Alfredo Dinis, um dramático equívoco
3- DN, Cardeal diz que maior drama é a negação de Deus
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