Humpty & Dumpty.
O Jairo Filipe atribuiu-me este argumento de palha, que depois se entreteve a refutar:
«1. Só aceito algo como verdadeiro se tiver provas disso.
2. Não é possível provar uma negativa, por isso o ónus é de quem afirma que Deus existe.
3. Não existem provas da existência de Deus.
Logo sou ateu!»(1)
Entretanto, o Orlando Braga alegou que «Estas premissas foram escritas em um blogue ateísta conduzido por professores universitários portugueses» apesar de admitir «Eu não frequento nem leio nada do tal blogue ateísta»(2), divagando de seguida por metafísicas que nada têm que ver com o que eu argumento. Esta atitude de deturpar, ou de nem sequer ler, os argumentos que pretendem refutar não merece muito respeito. Mas como as pessoas para quem eu escrevo não são Jairos nem Orlandos, aqui fica um esclarecimento, caso interesse a alguém.
A primeira premissa engana porque o termo “provas” conota algo de definitivo. As provas do crime, provas matemáticas e assim por diante. O critério mais importante para mim não é esse (3). Como o próprio Jairo cita, sem perceber, «Acredito em proposições que passem as provas». Ou seja, não que estejam provadas mas que sejam postas à prova. Enquanto passarem os testes merecem alguma credibilidade. E isto não é uma premissa. É consequência de premissas mais consensuais: se uma proposição não pode ser posta à prova, nem podemos saber se é verdadeira nem a podemos distinguir de infinitas alternativas inconsistentes e impossíveis de testar. Por exemplo, a proposição de que existe exactamente um deus indetectável é inconsistente com a proposição de que existem dois, ou três, etc, e nenhuma delas pode ser posta à prova. Eu rejeito como falsa qualquer proposição que não possa ser testada porque ser verdadeira ou falsa não fará diferença e porque há infinitas alternativas impossíveis de distinguir, sendo praticamente nula a probabilidade de escolher a certa.
A segunda premissa é um disparate. Qualquer proposição pode ser enunciada de forma positiva ou negativa. Por exemplo, “Deus não existe” é logicamente equivalente a “Tudo o que existe é diferente de Deus”. Novamente, o Jairo cita-me sem perceber o que transcreve: «uma proposição da forma “X existe” tende a ser menos plausível, à falta de evidências para a existência de X, do que a sua negação», não por “não se provar uma negativa” mas porque afirmar que algo existe é afirmar que um objecto real tem um conjunto de propriedades. Por exemplo, afirmar “existe uma montanha feita de ouro” é dizer que, entre os objectos que fazem parte da realidade, pelo menos um tem as propriedades de ser montanha e ser de ouro. Por isso, uma proposição do tipo “X existe” é, na verdade, uma conjunção de proposições acerca das propriedades desse objecto X. E quanto mais propriedades se alega, sem fundamento, menos plausível se torna a sua conjunção. É extremamente improvável que, sem evidências sólidas para cada alegação, seja verdade uma conjunção de proposições como “é omnisciente, e omnipotente, e benevolente, e encarnou em Jesus, e nasceu de uma virgem, e morreu pelos nossos pecados” e assim por diante. Aceitar a alegação de que o deus de uma religião existe implica acreditar que os adeptos dessa religião conseguem acertar em todas as propriedades que enunciam. Dado o número de alegações que proferem e a falta de evidências que as suportem, o mais provável é que tenham engatado alguma coisa (4).
Finalmente, «Não existem provas da existência de Deus». Nas teologias mais abstractas é tese comum que a hipótese de Deus existir não pode ser posta à prova. Se assim fosse, então não poderia haver quaisquer indícios da existência desse deus e, pelas razões que expus acima, justificava-se descartar essa hipótese. No entanto, esta tese não é correcta. A hipótese de existir um ser omnisciente, omnipotente e perfeitamente bom, por exemplo, implica restrições ao que se espera observar, restrições essas que servem para testar a hipótese. A teologia cristã até reconhece este problema dos dados mostrarem haver muita maldade e sofrimento quando a hipótese do universo ser governado por uma bondade perfeita prevê precisamente o contrário. Os teólogos chamam-lhe “problema do mal”, uma designação incorrecta porque, quando os dados e a hipótese são inconsistentes, o problema será provavelmente da hipótese. Assim, o mais correcto seria chamar-lhe o problema da hipótese de Deus não ser consistente com o que vemos todos os dias à nossa volta. O que dá uma boa razão para procurar hipóteses alternativas que encaixem melhor no que sabemos.
O Jairo refuta o argumento que ele inventou apontando inconsistências entre disparates que tirou do chapéu, enquanto o Orlando, nem se incomodando em ler o que eu escrevi, divaga sobre a metafísica que não tem nada que ver com o assunto. O que me dá a desculpa para esclarecer mais um ponto. É comum alegarem que este raciocínio não se aplica porque o deus é metafísico, transcendente, não é do domínio empírico, não é causa entre causas ou ser entre seres e desculpas afins. Mas nada disso é relevante. A abordagem que proponho é válida para quaisquer hipóteses acerca dos factos, independentemente dessas classificações. Se a hipótese não pode ser posta à prova, então tem de ficar no caixote com a infinidade de outras hipóteses que estão na mesma situação. E se pode ser testada, então só merece crédito na medida em que passar nos testes e nunca se for inconsistente com os dados. Não encontrei ainda qualquer religião cujas hipóteses centrais merecessem tal crédito, e é por isso que sou ateu.
1- Jairo Filipe, Neo-Ateísmo, a Treta. Parte II
2- Orlando Braga, Caros ateístas: a negação de uma metafísica é sempre uma metafísica!
3- Como já escrevi há uns anos, em Provado cientificamente.
4- Quanto ao ónus da prova, esse já foi treta da semana há uns tempos.
Em simultâneo no Que Treta!.