Treta da semana: com isso não se brinca!
Já ouvi dizer muitas vezes que há coisas das quais não se pode troçar, supostamente por serem sérias. A nação, a religião, o clube de futebol, a verruga no nariz, o que calhar. No seu post desta semana, o João César das Neves critica o Jon Stewart, o anfitrião do excelente Daily Show, precisamente pelo «perigo da atitude» de brincar com coisas sérias. Esclarece que «Podem tratar-se coisas sérias fingindo brincar», mas são se for para rir com gosto, porque «é tão perigoso brincar com coisas sérias.» (1). Parece-me que o João tem alguma dificuldade com o humor.
Dois amigos andam à caça quando um, subitamente, desfalece. O outro telefona para o 112.
– Está? É o meu amigo… agarrou-se ao peito, caiu no chão e não está a respirar. Acho que está morto!
– Tenha calma. Primeiro, temos de ter a certeza…
Ouve-se um tiro.
– Pronto. E agora, o que faço?*
Para apreciar o humor é preciso ter capacidade para mudar de perspectiva, percebendo as coisas de uma forma contrária à pré-concebida e, igualmente importante, ter prazer em fazê-lo. A maior parte das pessoas consegue, em teoria, imaginar o que seria ver as coisas de outra forma. Mas, para muita gente, há situações em que fazê-lo é quase doloroso. São essas pessoas que dizem que não se brinca com coisas sérias, as tais em que lhes custa contemplar uma mudança de ideias.
É por isso que o João César das Neves diz que podemos criticar fingindo brincar mas, com “coisas sérias”, o gozo tem de ser fingido. Nesses casos, dói tentar pensar de outra forma, mudar de perspectiva ou largar os preconceitos, pelo que só se pode dar um esgar sofrido e não um sorriso com gosto. Daí a dificuldade que pessoas como o João César das Neves têm em aceitar o humor nessas situações. E, suspeito, é também por isto que há tão poucos cómicos de sucesso que são crentes religiosos. A religião é, por excelência, uma “coisa séria”, onde se treina desde criança a temer a possibilidade de mudar de ideias.
O defeito desta relutância é que a capacidade de ver as coisas de outra perspectiva é uma ferramenta fundamental para resolver problemas, porque permite procurar alternativas, corrigir erros, tomar boas decisões e avaliar correctamente as situações. Principalmente quando o problema é sério. Quem se mantém disposto a rir mesmo com coisas sérias não só demonstra esta capacidade como também a disposição para se servir dela. E isto é bom, dá-nos jeito a todos e devemos praticá-lo com frequência para nunca perder o hábito. Não é por acaso que os xenófobos, nacionalistas, hooligans e fanáticos têm, geralmente, um sentido de humor bastante pobre.
Por exemplo:
Eu sou fã do Dawkins, acho que os problemas que ele aborda são sérios e, para mim, o cepticismo é uma coisa importante. Também não me parece que a motivação dele para escrever seja esta que o sketch dá a entender. Mas não só me dá gozo ver, por uns momentos, as coisas desta perspectiva – mesmo sabendo que não é verdade – como acho útil ser capaz de considerar esta possibilidade. Não se aplica aqui, mas talvez se aplique noutros casos.
O humor é brincadeira, mas é também um teste importante da nossa capacidade de nos colocarmos fora dos nossos preconceitos, hábitos e tabus. Se gozar com uma coisa nos custa, se não conseguimos rir por nos parecer “coisa séria”, então não estamos preparados para lidar com o assunto de forma objectiva e imparcial. Só para concluir, deixo mais este. Tentem adivinhar o tipo de pessoa que não achará graça a isto.
* Segundo os inquéritos do Richard Wiseman, esta é a piada mais engraçada do mundo, originalmente do Goon Show. Infelizmente, não encontrei uma expressão em português tão ambígua como o “let´s make sure he’s dead” original.
1- DN, O poder de Jon Stewart
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