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E o método, pá?

Hoje em dia é desconfortável uma religião admitir conflitos com a ciência. Por isso, muitos religiosos se esforçam para disfarçar a incompatibilidade entre as duas abordagens. O Miguel Panão, por exemplo, citando John Haught, aponta que o problema é «a crença num âmbito explanatório ilimitado da ciência»(1), enquanto o Alfredo Dinis alega não haver conflito porque «a ciência não consegue demonstrar que Deus não existe, a fé também não consegue provar o contrário»(2). Nada disto é relevante. O que o Alfredo aponta é trivialmente verdadeiro para uma infinidade de coisas, como os mafaguinhos, o Pai Natal e um bule em órbita entre a Terra e Marte. E se bem que não se saiba se é possível explicar tudo, sabe-se que, para explicarmos alguma coisa, precisamos de um argumento sólido de onde a possamos inferir. Precisamos de premissas que possamos confirmar independentemente e de um raciocínio válido que nos conduza ao que queremos explicar. E isso a fé não dá.

A teoria da evolução é uma boa explicação. As premissas são fáceis de confirmar: os organismos herdam características dos seus antepassados, reproduzem-se e o sucesso reprodutivo depende, em parte, das características herdadas. E disto podemos inferir os mecanismos que vão moldando a distribuição de características nas populações ao longo das gerações. Para casos mais concretos podemos detalhar as premissas por observação e chegar a conclusões muito específicas. Em contraste, a hipótese de que Deus criou tudo não explica nada. Fica pendurada, sem fundamento, e dela nada se pode concluir. Não explica porque é que as mitocôndrias têm ADN, porque é que a retina dos vertebrados está ao contrário da dos invertebrados ou porque é que as bactérias adquirem resistência aos antibióticos. Não explica nada, nem se justifica crer que é verdade. No entanto, é nisso que os religiosos crêem.

E o fundamental na ciência nem sequer é o conjunto de explicações que se adopta num dado instante. É o método para as avaliar, sempre a título provisório, pelos dados disponíveis. Nisto, o conflito com a religião é óbvio. Segundo o Anselmo Borges, «Deus não é objecto de ciência […] Deus é objecto de fé e há razões para acreditar como há razões para não acreditar.»(3) Isto assume implicitamente que Deus existe, que não é mera fantasia ou termo sem sentido, e considera apenas a fé e a crença. Mas se as pessoas acreditam ou não é lá com elas, e a fé é o que cada um quiser. A questão objectiva é se a hipótese de Deus existir é factualmente correcta e, para chegar a uma conclusão fundamentada acerca disto, é preciso seguir o tal método: formular a hipótese de forma a poder ser testada, confrontá-la com alternativas e com os dados e, com base nas evidências disponíveis, aceitá-la como verdadeira, provisoriamente, apenas se o seu desempenho for nitidamente superior ao das restantes. Concluir que um deus existe porque se tem fé é atirar a ciência pela janela.

O Bernardo Mota vai dar um curso sobre “Ciência e Fé”(4), que aproveito para divulgar, para pedir que ele depois disponibilize a gravação das aulas e para sugerir que aborde o problema como ele é. O Bernardo também defende que não há conflito entre ciência e religião e gosta de apresentar o exemplo de Galileu na tentativa de ilustrar isto. Galileu disse que nem tudo orbitava a Terra, pela observação das luas de Júpiter. Se isto se podia considerar evidência conclusiva é discutível, e é aceitável, cientificamente, que houvesse alguma relutância em aceitar de imediato o heliocentrismo só por causa disto. Mas o que fizeram foi prender Galileu e ameaçá-lo para o obrigar a negar o que as evidências lhe diziam. Cientificamente, mesmo que Galileu fosse parvo e não tivesse razão nenhuma, mesmo assim isto não se faz. Se os doutores da Igreja lhe tivessem feito perguntas tramadas, publicado refutações ou até feito comentários sarcásticos, eu concordava com o Bernardo. Mas não vejo maior conflito com o método da ciência do que mandar prender quem defende hipóteses com as quais se discorda.

O que os apologistas do está tudo bem sistematicamente esquecem é que a ciência não é um pacote de hipóteses que possam isolar das suas fés alegando não haver lá nada acerca do seu deus preferido. A ciência é o melhor método que conhecemos para encontrar a verdade, porque exige hipóteses explícitas com consequências claras, exige o confronto de hipóteses alternativas e corrige os erros quando dados novos o permitem. Afirmar que um deus existe porque se tem fé e porque é impossível provar que não existe é contrário e este método, porque está bem estabelecido, cientificamente, que a fé não é um indicador fiável da verdade de hipóteses factuais e que ser impossível de refutar, quaisquer que sejam os dados, apenas mostra que a hipótese foi mal formulada.

Gostava que o Bernardo, no seu curso, e os apologistas do tal “diálogo”, encarassem o problema verdadeiro em vez de inventar espantalhos. Gostava que explicassem como é que o seu método de concluir coisas pela fé e pelo “não se prova o contrário” pode ser compatível com o método a que chamamos ciência. É claro que também gostava de ganhar o Euromilhões, benesse com a qual não conto e que, mesmo sem jogar, ainda me parece a mais provável das duas.

1- Miguel Panão, Método científico contradiz Cristianismo?, mas ver comentários acerca da tradução da expressão original.
2- I Online, Ciência e religião. Afinal o diálogo é possível
3- DN (2009), Darwin e a religião
4- Bernardo Motta, Curso “Ciência e Fé”

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