Milagres – II
No texto anterior referi que existe quem acredite em milagres que não violam as leis naturais. Aleguei que se trata de uma crença absurda, e explicarei porquê neste texto.
Imaginemos um universo com determinado conjunto de leis naturais. Nesse universo existirão fenómenos mais prováveis, e outros menos prováveis. Numeremos os fenómenos ordenando-os por ordem descrescente de probabilidade de ocorrência. Designemos como «raríssimos» os fenómenos mais raros.
Perante a ocorrência de um fenómeno «raríssimo» isolado, justificar-se-ia acreditar na ocorrência de um milagre? À partida parece que não, pois, por definição, será de esperar um determinado número de fenómenos raríssimos, de acordo com as leis naturais em causa.
E se ocorressem fenómenos «raríssimos» com muito mais frequência do que aquela que se esperaria? Por definição, isso implicaria que as expectativas estavam erradas. Que o conhecimento das leis naturais que presidiu às espectativas não era adequado, e que isso explica que no mundo natural o fenómeno seja mais comum do que na nossa imagem do mundo natural. O corolário disto é que caso o nosso conhecimento das leis naturais espelhasse o funcionamento das mesmas, esta situação seria impossível. Nesta situação o alegado «milagre», porque natural, pode ser estudado como toda a natureza é estudada – através dos métodos empíricos das ciências naturais. A ocorrência do «milagre» acima do esperado apenas significa que o nosso conhecimento das leis naturais era desadequado.
Novamente, passo a expor exemplos. A Amélia encontrou no aeroporto a sua amiga Rita. Este fenómeno não teria nada de extraordinário, não fosse dar-se o caso de já não falar, pensar nem ver Rita há duas dezenas de anos, e ter pensado nela precisamente dez minutos antes de ver. Amélia vê nesta situação a prova de que «não existem coincidências». Nesta situação existem duas possibilidades.
Uma é que o nosso conhecimento das leis naturais nos permita estabelecer uma estimativa do número de vezes em que esta situação ocorre (alguém pensar num amigo em que já não pensa ou vê há mais de dez anos, e encontra-la nos trinta minutos seguintes), e essa estimativa ser adequada, sendo Amélia (entre outros) a feliz contemplada – a alguém tinha de calhar a lotaria, e existem coincidências.
A outra é que o nosso conhecimento das leis naturais seja desadequado. Este tipo de situações é muito mais comum do que aquilo que as nossas estimativas permitiriam prever, o que evidencia mecanismos que desconhecemos. Sendo mecanismos naturais, estão acessíveis ao estudo empírico, e uma vez estudados e conhecidos seria possível estabelecer uma nova estimativa, desta feita adequada.
O Jeremias sofre de um cancro, e os médicos consideram que a probabilidade de cura é praticamente nula. Jeremias reza a Nuno Álvares Pereira, pedindo que este interceda por Deus para ser curado. Os médicos não consideram que a oração altere a probabilidade de cura, e desta forma não alteram a sua estimativa de probabilidade. O cancro de Jeremias acaba por regredir e desaparecer. Podemos considerar três possibilidades.
Uma é que o conhecimento das leis naturais seja adequado: a reza não altere a probabilidade de cura, e a estimativa do número de pessoas curadas na situação do Jeremias corresponda ao número (reduzido) daquelas que de facto são curadas.
A segunda é que o conhecimento das leis naturais seja desadequado, independentemente do efeito da oração. Rezem ou não, pessoas como o Jeremias a serem curadas são muito mais comuns do que os médicos imaginariam, o que significa que os mecanismos de funcionamento desse cancro deveriam ser melhor compreendidos.
A terceira é que os médicos estejam equivocados quando pensam que a oração de Jeremias não alterou a sua probabilidade de cura. De acordo com as leis naturais «verdadeiras», uma pessoa na situação do Jeremias que reze convictamente tem uma probabilidade de cura superior às estimativas dos médicos. Como todo este mecanismo é natural e observável empiricamente (até porque verifica-se estatisticamente), a ciência acabará por refazer as suas estimativas de cura, consoante o paciente reze de forma sincera ou não.
Claro que em quaquer destes casos a palavra «milagre» parece desadequada para descrever o fenómeno raríssimo em jogo. Se a ocorrência do fenómeno se deve a uma mera coincidência sem significado, expectável precisamente na frequência com que ocorre, ele não merce tal designação. Mas, por outro lado, se o espanto pela ocorrência do fenómeno se deve apenas a uma espectativa errada em relação à frequência da sua ocorrência, devida a um conhecimento deficiente e incompleto das leis naturais, o fenómeno não é hoje mais milagroso do que era o trovão ou as cheias do Nilo para os antigos. Um dia será estudado e compreendido.
O absurdo está em querer que o fenómeno seja ao mesmo tempo extraordinariamente raro, e ao mesmo tempo suficientemente comum para que a sua ocorrência repetida seja ainda mais extraordinária. O problema é que se é «suficientemente comum» para isso aconteça, então não é tão «extraordinariamente raro».
Este paradoxo só poderia ser resolvido se o fenómeno, por hipótese, levasse à conclusão de que quaisquer leis naturais que a ciência pudesse encontrar seriam sempre insuficientes para explicar a realidade – nunca se conseguiria, por melhor que se conhecesse a natureza, fazer corresponder as expectativas da realidade (esquema 2) à ocorrência de eventos na realidade (esquema 3) – mas isso implica, por definição, que o «milagre» em causa seria sobrenatural.
Por fim, deve dizer-se que grande parte do espanto com ocorrências percepcionadas por alguém como raras, mas que na verdade mais comuns do que aquilo muitos esperariam, deve-se não ao desconhecimento actual a respeito das leis naturais (que existirá), mas sim aos enormes erros de estimativa desse alguém. Na verdade, por várias razões que a selecção natural explica, mas também devido a alguma ignorância sobre estatística, este tipo de erros nas estimativas são relativamente comuns. O próximo vídeo, que aconselho vivamente, desenvolve esta questão: