Se me permitem.
Gostava de me intrometer na conversa entre o Bruno Nobre e o Pedro Lind, no blog Companhia dos Filósofos. A conversa começou com uma pergunta do Pedro, se é «possível uma co-existência não contraditória entre Ciência e Religião?»(1). Infelizmente, os interlocutores parecem ter logo concordado que a ciência e as religiões, ou pelo menos a ciência e a vertente mais moderna do catolicismo erudito, abordam problemas diferentes e, por isso, coexistem sem conflitos Segundo o Bruno, a ciência não responde a «questões que saem do âmbito da causalidade eficiente» e «não é capaz de descortinar uma finalidade ou de fazer uma valoração moral ou estética.»(1) O Pedro concordou, escrevendo que «a ciência ocupa-se do “Como?”, mas não do “Porquê?” e muito menos do “O quê?” ou do “Para quê?”.»(2)
Esta distinção é pouco correcta. Podemos, por exemplo, perguntar o porquê da construção das pirâmides, para que foram feitas, que significado tinham para os egípcios e que valoração moral ou estética estes faziam dessa construção. Estas perguntas são científicas, mesmo tratando de sentido, valores, propósito, moral e estética. Se eu perguntar se devo construir uma pirâmide, que sentido ela terá para mim ou se é bonita, aí concordo que a ciência não dá resposta. Mas a diferença é mais subtil, e mais fundamental, do que apenas distinguir o “como” e o “porquê”.
As perguntas acerca do propósito, significado e estética das pirâmides na cultura egípcia têm respostas objectivamente correctas ou objectivamente erradas. A hipótese de que as pirâmides foram feitas para os Goa’uld aterrarem, por exemplo, é (infelizmente) incorrecta. Assim, para responder a estas perguntas é preciso obter conhecimento acerca destes aspectos da realidade, o que implica formular e testar hipóteses. Implica ciência. O segundo caso é diferente. Eu posso escolher fazer uma pirâmide para os Goa’uld aterrarem ou para ter sombra quando como pastéis de nata. Posso achá-la bonita ou feia e posso venerá-la ou aparafusar-lhe urinóis. Nenhuma destas alternativas é mais correcta ou incorrecta. É uma escolha. Essa é que é a diferença importante. A ciência não me diz para que hei de querer uma pirâmide ou que sentido esta há de ter para mim porque isso são escolhas pessoais e não alegações acerca de factos.
Esta distinção é importante porque todas as religiões assentam em alegações factuais, mesmo quando se usa “religião” para referir apenas o catolicismo apostólico romano de hoje. Que Deus existe, que Jesus era Deus, que foi crucificado pelos Romanos e que teve apóstolos são alegações cuja verdade só pode ser conhecida testando-as, contra dados e contra hipóteses alternativas. Ou seja, pela ciência. E não são só aquelas hipóteses que, em teoria, se poderia testar, como a morte de Jesus na cruz. Inclui também hipóteses impossíveis de testar. Uma confusão recorrente é que a ciência não se pode pronunciar acerca destas hipóteses. É errado. Hipóteses que não se pode testar também não podem constituir conhecimento porque nunca podemos saber se são verdade ou não. Portanto, é sempre preferível optar por alternativas que se possa testar e que possam ser suportadas pelas evidências. Se eu propuser ao Bruno e ao Pedro, ambos físicos, que a gravidade é sustentada por milhões de duendes invisíveis a pedalar em bicicletas mágicas, eles dirão que a teoria de Einstein é melhor. Não por poderem falsificar a minha hipótese, mas porque, ao contrário da de Einstein, a minha não pode ser testada.
Sendo o âmbito da ciência o do conhecimento dos factos, o conflito com as religiões surge até na forma como estas abordam a ética. Os juízos de valor saem do âmbito da ciência porque, mesmo que os factos ajudem a decidir, o fundamental é a decisão. Por exemplo, decidir se encaramos a homossexualidade como um mal a combater ou como uma preferência pessoal. A ciência ajuda a tomar uma decisão informada mas não pode decidir por nós quando o problema é de valores e não de meros factos. No entanto, religiões como as cristãs ignoram os valores e consideram apenas alegações de factos. Deus não gosta, é contra a lei natural, é pecado e pronto. Mas quando se reduz a ética a factos não só se perde de vista o fundamental – a questão não é se Deus gosta ou não gosta mas o que nós devemos fazer – como também se passa a focar um problema científico. Saber o que Deus aprova ou reprova é um problema de conhecimento objectivo, que só se resolve testando as hipóteses e não com palpites ou auto-proclamações de infalibilidade. E se as hipóteses não forem testáveis, isso é defeito delas e nunca justificação para as assumir verdadeiras.
Resumindo, gostava de apontar ao Pedro e ao Bruno que a demarcação que concordaram inicialmente está incorrecta e desvia a conversa para longe do problema principal. Todas as religiões assentam em alegações factuais, alegações cuja verdade depende objectivamente de se adequarem à realidade. Saber se são verdadeiras ou falsas exige compará-las com os dados e com hipóteses alternativas o que, quando feito com diligência e honestidade, é ciência. O problema principal é que as religiões defendem como certezas hipóteses que não cumprem os requisitos mínimos de aceitação. Isto cria um conflito com a ciência porque um dos fundamentos da ciência é precisamente rejeitar hipóteses que não cumpram esses requisitos. Por exemplo, a ciência não pode aceitar que um homem da palestina era o criador do universo, nasceu de uma virgem e ressuscitou só porque se conta que os amigos dele achavam que sim. Considerar essa hipótese verdadeira com base em evidências tão inadequadas não é estar fora da ciência. É estar contra a ciência.
1- Começa neste post: Diálogos: dois físicos conversam sobre a fé
2- Dois físicos conversam sobre a fé (2).
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