Loading

Treta da semana: «Mentes fechadas».

A homeopatia não funciona. Esta é uma conclusão bem fundamentada quer pela teoria quer pelos muitos testes já feitos. A homeopatia assume que o remédio para uma maleita é uma solução diluída de algo que cause os mesmos sintomas, o que não faz sentido. É como dar um chá de barrote a quem partiu uma perna. E a diluição pode ser tanta que não sobre qualquer átomo do princípio activo porque, alegam, a água guarda a memória dos remédios enquanto, convenientemente, se esquece dos dejectos que por ela já passaram. Os testes também são claros. Se a um grupo de doentes dermos medicamentos homeopáticos e o outro dermos algo parecido sem homeopatia, desde que não saibam qual é qual vão relatar melhorias idênticas (1).

Infelizmente, muitos meios de comunicação social dão uma ideia diferente. A RTP 1 dedicou há dias mais de meia hora a fazer publicidade ao homeopata Nuno Oliveira, não criticando sequer afirmações como «não há necessidade [de uma criança] estar a iniciar um tratamento da medicina convencional, um antibiótico, por exemplo, numa infecção, quando nós podemos tratá-lo de uma forma totalmente inócua e extremamente eficaz», nem questionou a sua prática de pediatria homeopática quando só tem um curso de homeopatia (2). Isto é um perigo. É possível que uma infecção passe sozinha – nesses casos a homeopatia “funciona” – mas também é possível que perder dias a experimentar tretas tenha consequências graves para a criança. Adiar o tratamento de uma infecção perigosa não tem nada de inócuo.

Mas o ponto principal deste post é a justificação dessas alegações, e não tanto o problema de saúde pública que estas coisas criam. Em resposta a um artigo na Visão, que criticou a homeopatia, o Nuno Oliveira alega que os cientistas é que têm a mente fechada e dá exemplos de três erros comuns nas tretologias: «Estudo Homeopatia quase compulsivamente há muitos anos»; «os critérios de evidência aos quais a Homeopatia tem sido submetida, estão totalmente errados. A Homeopatia tem as suas regras específicas»; e «não podemos querer ter resultados homeopáticos, quando os medicamentos são utilizados segundo a visão da medicina convencional.»

O primeiro problema é “estudar” a hipótese em vez de confrontar várias alternativas com os dados. É verdade que na escola nos dão as hipóteses e teorias pré-fabricadas, mas não é assim que elas são geradas. As terapias surgem quando a medicina estuda as doenças, tenta perceber os mecanismos que as causam e selecciona, testando, as formas mais eficazes de as tratar. Isto é o que a ciência faz. Estuda o fenómeno, reúne dados e usa essa informação para seleccionar as hipóteses mais correctas. As tretologias fazem o contrário. Partem de umas crenças que não questionam, seja as “leis” da homeopatia, o credo ou os efeitos astrológicos dos planetas, e depois inventam histórias para enfiar isso em todo o lado, interpretando os dados a gosto.

O segundo problema é invocar excepções arbitrárias. A propósito da religião, o Carlos Soares comentou que «É abusivo reduzir conhecimento a ciência»(4). Mas é precisamente o contrário. Os defensores de disparates sem fundamento é que tentam reduzir a ciência àquilo que não os incomode. Quem crê num deus diz que a ciência não se pronuncia acerca do seu deus, ainda que não se oponha à refutação científica dos deuses dos outros. Quem crê na vidência, tarot ou astrologia, idem. E a homeopatia faz o mesmo. Testar medicamentos em ensaios clínicos controlados, estatisticamente significativos e com dupla ocultação é excelente. Para os outros. Seria excelente também para a homeopatia se ela funcionasse, e nenhum religioso, astrólogo ou cartomante rejeitaria provas conclusivas de ter razão. Se as houvesse. Mas como não há, todos dizem alto lá, aqui a ciência não entra.

Finalmente, o tal pensamento positivo. É preciso ter a visão certa para testar a homeopatia, crer para compreender a religião, aceitar a existência do Serviço Magnético para receber a sabedoria do Kyron e assim por diante. Só que não é interpretando dados ambíguos de acordo com premissas falsas que se corrige o erro inicial. É por isso que a ciência formula testes objectivos, cujos resultados sejam claros independentemente daquilo que se deseja. É por isso que, quando quero saber se emagreci ou engordei, não me guio pelo espelho nem pela minha avó (que diz sempre que estou mais magro). Guio-me pelos buracos do cinto e pela balança, menos influenciáveis por factores subjectivos. Só assim se distingue entre conhecimento e erro, entre realidade e wishful thinking.

A ciência inclui todos os métodos, truques, procedimentos e técnicas que maximizam a probabilidade de seleccionar hipóteses verdadeiras. Mesmo que tenham de ser adaptados aos detalhes de cada problema, guiam-se sempre pelo princípio de que nos podemos enganar, procurando resultados claros que determinem, sem ambiguidade, quais das nossas hipóteses estão mais de acordo com a realidade. Quem é redutor, e tem mente fechada, é quem invoca excepções para proteger deste escrutínio as suas hipóteses favoritas. O Nuno Oliveira escreve que «Se queremos verdadeiramente evoluir no conhecimento, temos que estar abertos, temos que questionar, pela positiva e não pelo derrotismo.» Não. Temos é de questionar com objectividade. Temos de obter dados que indiquem o caminho correcto mesmo que isso frustre as nossas expectativas. Isso de “questionar pela positiva” não é conhecimento. É ilusão.

1- Ben Goldacre no Guardian, 16-9-2007, A kind of magic?
2- A.P. Homeopatia no YouTube, Homeopatia na RTP 1 – parte 1/4
3- Nuno Oliveira, 18-2-2011, Mentes Fechadas
4- Comentário em A diferença, ilustrada.

Em simultâneo no Que Treta!

Perfil de Autor

Website | + posts