A cárie
O senhor Salustiano era um homem de fé. Lembrou-se de que S. Lamberto era o padroeiro dos dentistas e, por analogia, entendeu ele, dos sofredores dentais. Por isso, saiu do consultório e atravessou a povoação em direcção à igreja onde, naquelas circunstâncias de tempo, já pontificava o nosso conhecido padre José dos Santos Passos, segundo o qual os santos são intermediários entre os homens e Deus. Entrou directo na sacristia. Tinha pressa, porque o remédio que o dentista tinha colocado no dorido dente corria o risco de ficar fora de prazo em curto prazo.
O padre José dos Santos Passos lia o breviário, e mal se sobressaltou quando se deu a entrada, algo buliçosa, do senhor Salustiano:
– Boa tarde, caro paroquiano. É sempre um prazer vê-lo na Casa de Deus. Aliás, a si e a todos os paroquianos.
– Boa tarde, padre.
Durante o trajecto, o senhor Salustiano delineara uma espécie de estratégia. Santos são santos, têm o poder de interceder junto de Deus, mas não é menos verdade que o mortal não pode estar à espera das dádivas divinas sem que haja uma contrapartida. Não é por mero acaso que muitas pessoas palmilham os caminhos até aos santuários, onde depositam os ex-votos – normalmente sob a forma de dinheiro ou objectos valiosos. Por isso, o senhor Salustiano sabia perfeitamente que não podia esperar um milagre e, depois de concedido, ir todo contente para casa como se nada tivesse acontecido. Era o que faltava!
Estava disposto, assim o tinha decidido, a mandar pintar a igreja – aliás a precisar de pintura urgente. Bastava, apenas, que aquela cárie dentária desaparecesse por milagre.
– Diga-me, senhor padre: esta igreja tem alguma imagem de S. Lamberto?
José dos Santos Passos sentiu-se algo interdito. São Lamberto? Por que carga de água? Por acaso até nem era um santo com saída, o que estava a dar mais era os chamados “Santos Populares” ou, em alternativa, o S. Gregório, muito solicitado aos fins-de-semana, fora disso era mais santas, tipo Santa Filomena, Santa Maria Madalena… Agora São Lamberto???
– Por acaso não… temos muitas imagens, São Bento da Porta Aberta, São Teotónio, por exemplo…Mas porquê?
– Bom, é que São Lamberto é o padroeiro dos dentistas; ora, sendo padroeiro dos dentistas, certamente que não vai deixar de lado os que sofrem de cárie dentária…
José dos Santos Passos interrompeu-o:
– Não tem lógica, a sua dedução, meu filho. Se São Lamberto é padroeiro dos dentistas, nunca pode ser, ao mesmo tempo, padroeiro dos sofredores, não é verdade? São interesses antagónicos. Se não houver quem sofra dos dentes, não são precisos dentistas para nada. Se São Lamberto é padroeiro dos dentistas, protege-os, nunca poderia proteger os que têm problemas dentários, pois se assim fosse estaria, naturalmente, a prejudicar os dentistas. E os santos podem ter os defeitos que quisermos, mas fazem da honestidade o seu ponto de honra.
Naturalmente empolgado pelo seu discurso, José dos Santos Passos nem se apercebeu da barbaridade que acabara de lhe sair pela boca fora. Os santos têm defeitos? E são santos? Valha-me Deus!
Adiante.
O senhor Salustiano, no entanto, não se dava por vencido:
– Então diga-me, padre, a que santo terei de recorrer para curar uma cárie dentária?
José dos Santos Passos estupeficou-se:
– …Uma cárie dentária???
– Sim, padre. Uma cárie dentária. Sabe o que é isso, certamente.
– Claro que sei, se bem que não por experiência própria, graças a Deus. Mas nunca ouvi falar nesse tipo de cura… sinceramente… Quer dizer: pôr paralíticos a andar, pôr cegos a ver, ainda vá que não vá; agora curar cáries dentárias… não me parece. Aliás, repare: só são considerados milagres os factos que a medicina não consegue explicar.
Fez uma muito curta pausa:
– Nunca nenhum santo era capaz de fazer concorrência à medicina convencional, veja lá se compreende! Se a medicina não sabe como curar, aí sim, entram os milagres em acção. Agora, havendo remédio terreno, para quê ir buscá-lo ao Céu?
O senhor Salustiano ainda ficou uns momentos a olhar, hesitante, para o padre. Depois, acabou por se despedir com duas decisões irrevogavelmente tomadas: a primeira, nunca mais pôr os pés na igreja e, pura e simplesmente, tornar-se ateu; a segunda, arrancar o maldito dente. Podia, até, arrancar os dentes todos. Tudo, menos a broca.
Hoje, o senhor Salustiano é proprietário de uma invejável placa dentária com a qual, nos tempos livres e quando está bem disposto, costuma tocar castanholas, batendo com a arcada inferior na superior.
Ou vice-versa…
In: “Enquanto As Armas Falavam”, de José Carlos Moreira.
Editora Lugar da Palavra.
Perfil de Autor
- Ex-Presidente da Direcção da Associação Ateísta Portuguesa
- Sócio fundador da Associação República e laicidade;
- Sócio da Associação 25 de Abril
- Vice-Presidente da Direcção da Delegação Centro da A25A;
- Sócio dos Bombeiros Voluntários de Almeida
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- Colaborador do Jornal do Fundão;
- Colunista do mensário de Almeida «Praça Alta»
- Colunista do semanário «O Despertar» - Coimbra:
- Autor do livro «Pedras Soltas» e de diversos textos em jornais, revistas, brochuras e catálogos;
- Sócio N.º 1177 da Associação Portuguesa de Escritores
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