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Mês: Outubro 2010

24 de Outubro, 2010 Fernandes

Uma mão lava a outra

No dia em que o país celebrou a separação entre Estado e Igreja Católica, José Sócrates foi a Alfragide (Amadora) inaugurar… um templo católico. Agora, o governo revoga benefícios às instituicões religiosas mas não os tira à Igreja Católica.

Nos membros das comunidades religiosas não católicas, colocados a par da decisão governamental, a primeira impressão foi de incredulidade e a segunda de espanto. A mesma reacção encontrou-se na comissão da liberdade religiosa, órgão independente de consulta da Assembleia da República e do Governo, prevista na Lei de Liberdade Religiosa (Lei 16/2001) e com “funções de estudo, informação, parecer e proposta em todas as matérias relacionadas com a aplicação da Lei de Liberdade Religiosa”.

23 de Outubro, 2010 Carlos Esperança

O exorcismo da Celeste_1 (Crónica)

Em terras da Beira, depois da guerra, a gratidão para com a senhora de Fátima, pela afeição a Portugal, estendia-se ao senhor presidente do Conselho por nos ter livrado do conflito. No Cume sobrava piedade e faltava comida. Estavam no fim os anos quarenta e os portugueses  longe de começarem a ser gente.

A Celeste morava ao cimo do povo, sozinha, e cismava que se matava. Via-se que não regulava bem da cabeça e adivinhava-se a fome que a apoquentava. Suspeitaram os vizinhos de mau olhado e a ti Catrina, calhada nas benzeduras para tal moléstia, já a tinha ido visitar com outras mulheres embiocadas no xaile e os rostos sumidos na copa de enormes lenços pretos. Das conversas delas nada se disse mas ouviu-se na rua a ladainha:

«Dois to deram, três to tirarão,
foi S. Pedro e S. Paulo e o apóstolo S. João
Sant’Ana pariu Maria, Maria pariu Jesus,
assim como isto é verdade,
livre este corpo de ares, olhares e todo o mal
em louvor de Sant’Ana e Santa Iria…
padre nosso, ave-maria…»

Muitos padre-nossos e ave-marias depois, sem abrandar o mal, as mulheres mais velhas concluíram que deviam ser espíritos que atenazavam a bendita alma da Celeste, tão temente a Deus que ela era, mas nestas coisas de espíritos ruins são estes que escolhem a morada e, embora a oração lhes dificulte a entrada, está provado que não é intransponível a barreira.

A adensar a suspeita ouvia-se na habitação, durante a noite, o barulho de máquina de costura, que não havia, a trabalhar, a perturbar o sono e a aumentar a angústia. À porta juntavam-se pessoas vindas da igreja a ouvir o som que os espíritos produziam. Os poucos que não ouviram, apesar da atenção e do silêncio, conformaram-se com a deficiência auditiva e renderam-se à maioria.

O senhor padre pode ter desconfiado do diagnóstico, o sr. António Bernardo dizia que ela não batia bem da bola, podia até ser dos espíritos, a senhora professora aconselhou um médico, que disparate, o que sabe um médico destas coisas e onde é que o há, mas o povo na sua infinita sabedoria já tinha o veredicto, eram espíritos, só podia ser, falava-se de uma avó falecida há muitos anos, a voz tinha sido reconhecida, faltaram-lhe algumas missas ao trintário na encomendação da alma, não se perde nada em benzer a casa e deixar algum latim – conformou-se, acossado, o padre Pires –, dizem-se as missas em dívida e logo se verá.

A Celeste é mulher e o destino das mulheres serem possuídas, os espíritos malignos aproveitam e, depois de entrarem, são difíceis de expulsar. É um combate para senhores párocos, ou mesmo para um reverendíssimo bispo se as posses da vítima e a malignidade o aconselham. Pouco avezado a tais pelejas, mas com habilitações canónicas e compleição adequada à luta, bem se esforça o padre a desalojá-los. Quem julgue que a força da cruz e do divino devem bastar não conhece os espíritos e o furor que transmitem às mulheres possuídas, levando à exaustão o exorcista que não raro precisa de várias tentativas para se fazer obedecer. Fracassa e fica extenuado, à primeira, o padre Pires, valendo-lhe a gemada que o aguarda com vinho e açúcar, enquanto a ceia e o breviário lhe não retemperam as forças e devolvem a serenidade.

A Celeste não melhora. Continua a ouvir vozes que desconhece, definha. Alguns dias após, no regresso do Carapito, onde tinha ido levar o viático a um moribundo, volta o padre Pires à peleja com o maligno. Pode ser que na vez anterior se tenha entupido o hissope, avariado o crucifixo ou faltado à água a bendição, quem sabe, o senhor prior não costuma partilhar as dúvidas, se dúvidas assaltam o ministro de Deus, isto é um incréu a pensar, a força da fé move montanhas, sempre ouvi dizer, a Celeste pode ter perdido a fé com a fraqueza, e sem fé não adianta, é um esforço inglório, o certo é que o senhor padre volta a entrar naquela casa, se pode chamar-se assim ao sítio, mal nunca faz, senhor eu não sou digna de que entreis na minha morada, isto é uma forma de dizer, a Celeste refere-se a Deus que está em toda a parte, mas quando vem acompanhado do seu representante há-de infundir maior respeito, as pessoas humildes dizem estas coisas, o senhor padre mergulha bem o hissope, asperge-o com vigor, desenha cruzes, vai-se ao demo com o latim e as mãos, põe as pessoas a rezar o terço que a irmã Lúcia recomenda contra o comunismo, que também resulta com os espíritos, tudo obra do demo, deixa a reza para os paroquianos e sai da refrega exausto à procura da gemada com vinho, açúcar e nódoas para a batina, sem saber se os espíritos encurralados no corpo frágil obedeceram à ordem de expulsão, onde resistiam acossados à parafernália de alfaias sagradas e pias intimações.

As pessoas esperam na rua alheias ao perigo de serem apanhadas para refúgio dos espíritos em fuga. Nessa noite a máquina de costura inexistente permanece silenciosa e quieta, calam-se as vozes das almas penadas, a Celeste dorme bem pela primeira vez em muitos dias, depois da canja que lhe levaram. Se os espíritos não saíram estão debilitados.

A Celeste, com pouco alento, é certo, volta à horta e à igreja, o exorcismo resulta. Finou-se algumas semanas depois, completamente curada e liberta de espíritos malignos.

22 de Outubro, 2010 Carlos Esperança

No início da década de sessenta, ali na Covilhã (Crónica)

Não sei como era a Covilhã em 1186, elevada a vila por foral de D. Sancho I, nem em 1763 quando o Marquês de Pombal ali criou a Real Fábrica de Panos que havia de lhe traçar o perfil industrial e torná-la um local de misérias e grandezas conforme as crises cíclicas a que ficou condenada. Das grandezas fruíam os industriais que, duas gerações depois, abriam falência enquanto outros surgiam para recomeçar o ciclo. Das misérias foram vítimas gerações de assalariados que ora fugiam das aldeias em busca do magro salário na indústria, ora regressavam à fome e às courelas em Boidobra, Peraboa, Ferro, Verdelhos, Orjais, Canhoso, Cortes, Teixoso ou Casegas.

Era este revezamento entre o campo e a fábrica que não deixava enraizar a consciência proletária mas atraía para a política alguns rurais feitos operários. Descrito por Ferreira de Castro, em «A lã e a Neve», não creio que Horácio, pastor, fosse o paradigma dessa alternância que dos rurais fazia operários têxteis e os reenviava para as aldeias e para a enxada quando a crise de novo se instalava. Não era o amor à terra que os movia, eram as fábricas que os expulsavam.

As pessoas fazem as cidades mas estas são as suas circunstâncias, que as moldam e lhes imprimem o carácter, os hábitos e o gosto. Na cidade não havia a courela que dava aos operários a ilusão de terem garantidos os alimentos e a casa de telha vã que os abrigava da chuva e da neve, e a vida na cidade é sempre cara para quem não lhe pode fazer face. Por isso caminhavam horas antes de iniciarem longos turnos em alguma das numerosas fábricas, que seguiam o leito das ribeiras Carpinteira e Degoldra, que enchiam de ruído a cidade que sobe pela encosta no sueste da serra da Estrela.

Em 1961arrastava-se no Tribunal da comarca a falência da Fábrica Alçada, outras agonizavam, e preparava-se para laborar a Nova Penteação que, com a evolução dos teares mecânicos e a consequente redução de mão de obra, havia de durar décadas até seguir o destino a que, também ela, não seria poupada.

A Covilhã reciclava o trapo e tecia com fios de lã o estambre, com variados padrões e cores, saído da arte e engenho dos debuxadores. O delegado do Instituto Nacional de Trabalho nunca negava aos patrões o aumento das horas de laboração, se as encomendas cresciam, nem as autorizações para despedir, quando diminuíam, nem as prendas que, em qualquer caso, sempre recebia.

O Têxtil e o Avante acusavam o delegado do ministério das Corporações dos subornos e acicatavam a revolta, a polícia espiava, o tenente Gaspar assustava a pequena burguesia na esquadra da PSP, a PIDE prendia os comunistas, mas era no interior das fábricas que a revolta crescia, abafada pelo ruído dos teares e pelo medo da polícia e do desemprego.

Foi nos dois anos lectivos, de 1961/63, que me fiz assinante do Jornal do Fundão, onde a coragem de António Paulouro fez a pedagogia democrática que manteve a esperança num 25 de Abril que ainda vinha longe.

Nas fábricas, o PCP lutava para se impor e nos cafés conspirava a burguesia mais culta.
No Montalto, onde pontificava o distinto advogado Guilherme Raposo de Moura, fiz o meu tirocínio político com o João Heleno, ecónomo do sanatório, o médico Sá Lima, o bibliotecário da Gulbenkian, Abel Leite da Silva, o Ernesto da Farmácia, o professor primário Barata, futuro deputado constituinte, e o Ribeiro dos Tabacos a quem a PIDE mandou retirar a representação das cervejas, primeiro, e a dos tabacos, depois, sem nunca se render. Nos anos que vieram chegaram novos democratas que o tenente Gaspar se encarregou de intimidar, os bufos de denunciar e a PIDE de prender.

Um pouco abaixo do Largo do Pelourinho, no Café Solneve, o Jerónimo dos Santos, o Patacho e o Teixeirinha, que a democracia viria a fazer presidente da Câmara, eram o núcleo de outro grupo anti-salazarista ligado ao primeiro por grande cordialidade a que não eram alheias as qualidades de Raposo de Moura, uma referência na cultura, no foro e na política, personalidade de cativante simpatia e enorme prestígio.

A escola técnica, o liceu até ao 5.º ano e o colégio Moderno, até ao 7.º, dirigido por um grande democrata, Castro Martins, constituíam a escassa oferta de ensino que contava ainda com 45 professores do ensino primário.

Na Covilhã, nos dois anos que ali vivi antes de rumar ao distrito de Lisboa, ameaçado de demissão pelo Director Escolar, Silva Mendes, se não abandonasse a cidade ou as companhias, com dois polícias a seguirem-me e o padre Morgadinho a denunciar-me à PIDE, apercebi-me dos mecanismos de repressão da ditadura, da cumplicidade do clero com o fascismo e da dureza da vida dos operários.

Da Covilhã, trouxe a enorme carga afectiva que dos 18 aos 20 anos moldaram o homem e o cidadão que jamais deixei de ser. Saí da Covilhã compelido pelos biltres da ditadura mas a Covilhã nunca mais saiu de mim. Ainda hoje, quase meio século volvido, recordo numerosos amigos, muitos já falecidos, mestres da escola técnica, docentes de todos as instituições de ensino, taxistas, prostitutas, barbeiros, engraxadores, o Artur Campos, proprietário do Montalto que mandava ao primeiro andar um empregado avisar-nos da presença da polícia, e, sobretudo, os meus alunos que apareciam na escola dos Penedos Altos, com sono e fome, vindos das Lameirinhas, Borralheira e Lameirão.

Recordo o Leal, o ardina que uma noite me guardou, sob a camisola, o jornal habitual que, à largura de toda a primeira página, anunciava em letras garrafais um título em caixa alta: «Ontem reuniu a Assembleia Nacional para apreciar as contas gerais do Estado relativas ao ano findo». A ausência de um «t», nas contas, pôs o país a rir e a polícia a confiscar o diário mas o Leal, fiel e cúmplice, guardou um exemplar para o cliente de todos os dias.

A Covilhã, urbe que 350 metros de altitude separam da base até ao topo, a caminho das Penhas da Saúde, ansiosa por chegar à Torre, a serpentear a Serra da Estrela, tem velhas tradições democráticas. Foi um alfobre de gente que aprendeu na ditadura os caminhos da resistência, é hoje uma cidade de 140 anos na vanguarda do progresso a desafiar a interioridade e a vencer a batalha do desenvolvimento.

21 de Outubro, 2010 Ludwig Krippahl

ECR 1: Testemunhos.

No seu livro Educação, Ciência e Religião (ECR), o Alfredo Dinis e o João Paiva escrevem que «A racionalidade da fé baseia-se, entre outras coisas, no testemunho que chega a cada geração a partir dos primeiros crentes»(1). Mas não é claro porque é que isto há de ser racional.

Por um lado, só é racional aceitar um testemunho se percebemos como a testemunha sabe a verdade do que afirma. O testemunho de que Jesus era o criador do universo, que nasceu de uma virgem e que morreu para nos salvar só seria aceitável se as testemunhas pudessem averiguar tais coisas. O Novo Testamento não justifica tal conclusão, nem se percebe como o poderiam fazer. Aproveitando a analogia dos autores, que comparam o testemunho bíblico com as testemunhas num tribunal, os evangelhos equivalem à deposição de um médium acerca do que diz o espírito da vítima assassinada.

Por outro lado, se vamos concluir algo acerca dos deuses com base em testemunhos, temos de decidir em que testemunho nos baseamos. Num julgamento onde dez testemunhas se contradizem nenhum juiz racional poderá decidir apenas pelos testemunhos. Com as religiões, este problema é várias ordens de grandeza mais grave. E nem precisamos ir a religiões fora do cristianismo. Ou sequer fora do catolicismo. Mesmo restringindo o âmbito a esta, a que os autores se referem quando falam em religião no singular, temos um problema de testemunhos contraditórios.

O Bernardo Mota escreve que «é inútil e infértil estar a discutir se os católicos acham ou não que Adão existiu» porque «O cristianismo não é a soma das fés pessoais dos cristãos. O cristianismo é hierárquico, como o próprio Cristo quis que fosse. O Magistério ensina doutrina. Não doutrina que inventou, mas sim doutrina que recebeu de Cristo.» E, citando a encíclica De Humanis Generis, de Pio XII, defende que o Magistério ensina que Adão e Eva foram mesmo os dois antepassados de toda a humanidade: «os fiéis cristãos não podem abraçar a teoria de que depois de Adão tenha havido na terra verdadeiros homens não procedentes do mesmo protoparente por geração natural»(2).

O Alfredo Dinis e o João Paiva, católicos que o Bernardo classificará de inconsistentes, consideram que a posição de Pio XII é «um tanto ambígua»(3) e que a ciência permite rejeitar a ideia de sermos todos descendentes apenas de um Adão e de uma Eva. Nesta última têm razão. A diversidade genética humana é incompatível com o modelo do Bernardo que, de resto, é biologicamente ridículo. Mas o Bernardo tem razão no outro ponto. A posição de Pio XII acerca disto não é nada ambígua. Esse Papa claramente acreditava na história do Adão e Eva como a interpretam os criacionistas evangélicos hoje. Felizmente, a razão não nos obriga a ir atrás destes testemunhos.

O que a razão nos diz não é para acreditarmos no testemunho só por ser testemunho. Nem dos evangelhos, nem do Pio XII, Bento XVI, Bernardo Motta ou Alfredo Dinis. Isso só dá carradas de testemunhos e nenhum critério de escolha. A razão exige, pelo menos, que a testemunha saiba a verdade do que alega. Como Pio XII não percebia de genética nem tinha evidências desse Adão o seu testemunho vale zero. E o mesmo valem os testemunhos de quem diz que a hóstia se transubstancia, que Jesus era o criador do universo ou que a sua morte nos salvou a todos. Sem maneira de determinar a verdade dessas alegações não podem ser testemunhas legítimas.

Por isso tenho de discordar do primeiro capítulo do livro. Não é racional ser católico com base nos testemunhos. Tal como não é racional ser muçulmano, judeu, hindu, protestante, shintoista ou baha’i com base em testemunhos. Porque nem sequer podemos concluir que estas testemunhas sabiam o que estavam a dizer.

1- Alfredo Dinis e João Paiva, Educação, Ciência e Religião, Gradiva 2010, p. 14
2- Bernardo Motta, Adão e Eva
3- Alfredo Dinis e João Paiva, Educação, Ciência e Religião, Gradiva 2010, p. 24

Também no Que Treta!.

21 de Outubro, 2010 Carlos Esperança

O Vaticano não tem emenda…

… e quis baptizar à força a família Simpson que

frequenta a Igreja Protestante, mas segue outras religiões: a cerveja e os donuts. Mesmo assim, o Vaticano diz que Homer é “católico”

Um dia, Homer Simpson decidiu vender a alma ao Diabo por causa de um donut. Ele, que ressona quase sempre na missa do reverendo Lovejoy e que não perde uma oportunidade para gozar com o vizinho ultracatólico Ned Flanders. O resto da família – assumidamente protestante – também é pouco religiosa: Bart inferniza a vida dos colegas e a irmã, Lisa, rendeu–se aos encantos da Ciência e diz que Deus não existe.