Treta da semana: esperteza vegetal
Um artigo na Science, em Agosto, explica como as lagartas da traça Manduca sexta traem aos seus predadores a sua presença na planta do tabaco. Um composto na saliva da lagarta, ainda não identificado, catalisa a isomerização de compostos voláteis libertos pela planta danificada. O odor característico resultante desta reacção química atrai insectos do género Geocoris, que se alimentam destas lagartas.
Apesar do título do artigo ser descritivo e rigoroso, «Insectos traem-se na natureza aos predadores pela isomerização rápida de compostos voláteis de folha verde»(1), a notícia no DN Ciência baralha uma data de coisas. Além de omitir a referência ao original, por alguma razão prática corrente neste tipo de notícia*, e escrever mal o nome do segundo autor, dificultando a pesquisa, descreve que «as folhas das plantas do tabaco produzem um químico capaz de atrair insectos predadores que se alimentam dos seus atacantes – as lagartas.»(2)
O Mats, provavelmente lendo só a notícia no DN, deturpa ainda mais o artigo: «Impressionante como a planta descobriu por si só qual o químico certo para atrair os predadores certos para matar este tipo específico de lagarta.» E, com a típica humildade com que costuma abordar estas coisas, diz ser «Mais um sistema biológico que não pode ser explicado como o resultado de um lento acumular de mutações favoráveis.»(3) Na verdade, trata-se apenas de mais um de muitos sistemas e processos que o Mats não compreende.
Como os autores descrevem no seu artigo, é normal que as plantas libertem compostos voláteis quando são danificadas, compostos esses que frequentemente atraem predadores. Mas é errado ver isto como esperteza da planta. Devemos começar pela perspectiva do predador. Se os Geocoris fossem completamente azelhas, não sofriam muito com isso. O resultado seria uma proliferação tal de lagartas que, mesmo às cegas, haviam de encontrar que comer. Mas as variantes genéticas dos Geocoris competem entre si por um lugar na geração seguinte, e um insecto mais eficiente a procurar presas terá mais tempo e energia disponíveis para se reproduzir. Assim, a selecção natural favorece as variantes mais capazes de detectar as lagartas, desde que essa capacidade não seja demasiado dispendiosa.
Ao alterar os compostos voláteis libertados pela planta, as lagartas criam uma pressão selectiva nos Geocoris, favorecendo o aumento de sensibilidade a essa alteração. Isto não exige inteligência de nenhum dos intervenientes, e nem sequer é mérito da planta.
É claro que, se os predadores forem especialmente sensíveis a uma certa mistura de substâncias, isto cria uma pressão selectiva nas plantas. As variantes genéticas que levarem a planta a libertar mais dessas substâncias e, portanto, a atrair mais predadores, serão favorecidas com o passar das gerações. Por isso algumas plantas libertam odores específicos em resposta aos insectos herbívoros, atraindo outros que deles se alimentam. Isto também consequência da evolução por selecção natural. Mas, neste caso, nem sequer era esse o ponto do artigo. A ideia principal, como estava claro no título, é que são as próprias lagartas que se tramam pela alteração química dos compostos voláteis libertados pela planta. Se tivesse sido de propósito, tinha sido uma argolada das lagartas e não uma esperteza da planta.
Pior ainda, segundo a doutrina do Mats este sistema foi criado por um deus inteligente. O que não faz sentido nenhum. Criar uma lagarta que só come folhas e, ao mesmo tempo, um insecto que come a lagarta guiado pelo cheiro que ela liberta ao comer folhas não sugere inteligência. Se propositado, sugere apenas o ócio cruel da criança que se entretém a arrancar as asas às moscas. Mas, é claro, o Mats não sugere esta explicação. Nem esta, nem nenhuma. Alega apenas que é impossível explicar, como se a sua ignorância fosse a medida de todas as coisas. Porque esclarecer seria contrário ao seu objectivo.
O criacionismo, e a religião em geral, é uma ferramenta política. Serve para controlar as pessoas. E é mais fácil manipular quem anda espantado, às escuras e só com a fé para o guiar do que quem compreende as coisas, pensa por si e tem ideias claras. Por isso, o objectivo das doutrinas religiosas não é esclarecer. É tapar os horizontes com mistérios insondáveis, obscurecer ideias com conceitos confusos e convencer que as verdades profundas são contraditórias e impossíveis de compreender. Deus é bom e castiga, é transcendente e imanente, é três e é um, é divino e humano, age sem intervir. E é inteligente e bondoso mas faz as lagartas serem comidas pelo cheiro que deitam quando comem.
* O que é uma falta de consideração pelos autores originais e de uma chatice para quem quiser desembrulhar a confusão do jornalista.
1- Silke Allmann and Ian T. Baldwin, Insects Betray Themselves in Nature to Predators by Rapid Isomerization of Green Leaf Volatiles
2- DN Ciência, Planta do tabaco liberta químico que atrai predadores de lagartas
3- Mats, Planta do tabaco liberta químico que atrai predadores de lagartas
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