Crença, fé e religião
Muitas vezes que escrevo sobre isto noto que estes termos causam alguma confusão. Não quero obrigar ninguém a usar estas palavras como eu as uso mas queria esclarecer o que quero dizer com elas e salientar diferenças que me parecem importantes.
Uma crença é a aceitação de uma ideia. Se a ideia for uma proposição acerca dos factos, então crer é considerar essa ideia como verdadeira, correspondendo à realidade. Se a ideia for um juízo de valor, crer será adoptá-lo. Se for um ideal será partilhar desse ideal, e assim por diante. E todos temos crenças. Não se pode saber algo sem acreditar que é verdade, não se pode preferir algo sem acreditar que é melhor e não se pode almejar algo sem acreditar que vale a pena. Assim, quando critico crenças procuro explicar porque as rejeito e talvez persuadir alguém a rejeitá-las também. Se são crenças acerca dos factos posso apontar que não se justifica concluir que são verdade, e se são acerca de valores posso apontar inconsistências com outros valores. Mas como crer é uma atitude pessoal a discussão assenta sempre no princípio de que cada decidirá por si em que há de acreditar e mais ninguém tem nada com isso.
A fé é uma meta-crença, como diz Dennett. As crenças acerca dos factos carecem de uma justificação objectiva. Não podemos justificar acreditar que algo é verdade só porque queremos ou nos dá jeito. Mas a fé, para quem a tem, permite ignorar este requisito. Quem tem fé confia que aquelas crenças que a sua fé abrange estão automaticamente justificadas. A fé é crer na legitimidade dessas crenças. Sendo também uma atitude pessoal, fica igualmente ao critério de cada um decidir em que há de ter fé ou se há de ter fé alguma. Mas como a fé apenas dá a sensação de justificação a quem a tem, nunca se consegue justificar a quem não a tenha e não explica porque se há de ter fé numas crenças e não noutras, não há muito a discutir acerca disto a não ser apontar estes defeitos.
Uma religião é algo diferente porque é uma construção social e não uma atitude pessoal. Não é apenas a opinião de uma pessoa ou uma opinião partilhada por muitos. Uma religião é uma organização com uma classe profissional que alega saber mais que os outros acerca dos deuses, que afirma os seus dogmas como verdade e não como mera crença e que goza de benefícios, prestígio e poder injustificados. Injustificados porque assenta em fantasias disfarçadas de verdades. Não há evidências que o Joseph Smith tenha traduzido placas de ouro que Deus lhe emprestou, nem que Maomé tenha falado com Deus, nem que a Terra tenha sido criada em seis dias ou que Deus se tenha disfarçado de carpinteiro e morrido crucificado para perdoar pecados que não cometemos. E eu considero que é má ideia criar organizações influentes à volta de teses sem fundamento como estas.
O problema não é a crença ou a fé, que fazem parte da liberdade de crer e pensar. Os defeitos que tenham algumas crenças ou a fé devem ser mitigados de forma a respeitar esta liberdade. Podemos explicar que a astrologia é treta, que as medicinas alternativas não funcionam e que os OVNIs não são pilotados por ETs. E se, no fim disto tudo, alguém ainda quiser acreditar nessas coisas, paciência. Isso é lá consigo.
Mas as religiões afectam terceiros e temos de decidir o que permitimos a essas organizações. Se queremos crucifixos nas escolas e aulas de religião no ensino público. Se aceitamos as objecções à educação sexual e às lojas abertas ao domingo. Se permitimos que ganhem dinheiro com dízimos ou na venda de milagres e paraísos. Se financiamos missas e excursões aos centros de aparecimentos, e assim por diante.
Neste debate público, no qual a democracia assenta, somos responsáveis por distinguir aquilo que é crença subjectiva daquilo que é legítimo considerar facto e igualmente válido para todos. Não vamos inventar dados acerca da saúde, do desemprego ou da segurança rodoviária apenas pela fé. E, ao contrário do que as religiões defendem, a fé também não serve para inventar factos acerca da vida depois da morte, dos deuses e dos milagres. Por isso as religiões participam neste debate de uma forma intrinsecamente desonesta ao insistir ser facto dogmas que não passam de mera crença.
Esta diferença é importante. Quando critico crenças e fé estou a explicar a minha posição consciente de que não virá mal nenhum se discordarem de mim e não chegarmos a conclusão alguma. Mas quando critico religiões estou a participar num processo colectivo de decisão, que é prejudicial deixar em suspenso, e a denunciar como ilegítima a alegada autoridade dos membros destas organizações. Quando uma pessoa morre por recusar uma transfusão de sangue, ou vive um casamento miserável porque não se consegue divorciar, parte da culpa é do próprio por tomar tão más decisões. Mas parte da culpa é dos que lhe dizem saber, como facto, que há um deus que castiga quem se divorciar, receber transfusões ou duvidar de fábulas. Não só lhes falta legitimidade para afirmar que sabem tais coisas – sabem tanto disso como qualquer um de nós – como o mais provável é ser tudo treta, que isso não é coisa que seja fácil acertar à sorte.
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