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Infância perdida

Quando penso na minha infância, fico impressionado pela exiguidade das recordações que tenho de meu pai. Por causa do casamento minha mãe mudara-se para longe da sua terra natal. Era “um bicho do mato” e só tinha verdadeiros contactos com o pároco da freguesia.

Estou convencido que decidiu muito cedo que seu único filho havia de ser padre. Enfeitou-me e destinou-me ao sacrifício.

Recordava-me muitas vezes a frase de Lapérine: «quando temos de escolher entre dois caminhos, devemos tomar o caminho mais duro: o medo é o sinal do dever.»

Comecei muito cedo a ter pesadelos, via-me queimado pelas chamas do Inferno, e gritava, ao que parece, como condenado. O médico tranquilizava a minha mãe dizendo-lhe que se tratava de febres de crescimento. Na realidade o pecado mortal foi a obsessão de toda a minha infância e eu confessava-me muitas vezes com medo de não ter dito tudo. Recordo-me de um texto do meu catecismo, que se intitulava: «Pelos meus pecados mereci o Inferno.» Li-o e reli-o tantas vezes que ainda o sei de cor:

«Oh! Como são terríveis as torturas dos condenados no Inferno. Estão privados para sempre da visão de Deus. Sofrem num fogo mil vezes mais ardente do que todos os fogos da terra. Ouve constantemente blasfémias, gritos de raiva e de desespero. Estão rodeados de demónios. E por quanto tempo dura este suplício atroz? dura para sempre, para sempre, dura toda a eternidade. Oh como é terrível o Inferno! E é isso que nós merecemos pelo pecado mortal. Neste momento, talvez até eu próprio tenha pecados mortais a pesar-me na consciência. Se morresse agora, seria, portanto, precipitado no Inferno. Oh meu Deus, não permitais que eu morra neste estado. Arrependo-me sinceramente de todos os meus pecados e prometo nunca mais Vos ofender.»

Minha mãe evitava qualquer gesto de ternura para comigo, porque era preciso endurecer-me. Beijava-me na testa e, em seguida, apresentava-me a sua face direita. Nunca me lembro de ter estado sentado nos seus joelhos. Só uma vez me pegou nos braços: o dia da minha primeira comunhão. No fim do almoço, o prior da freguesia anunciou que eu ia entrar para o seminário, porque tinha vocação. Jesus tinha-me dito, no íntimo do meu coração, que fosse padre.

Fiquei estupefacto e inquieto, pois nunca tinha ouvido nada disso. Mas a alegria da assistência, o sorriso e a ternura da minha mãe, o facto de ser uma vedeta que teria direito à primeira fatia do bolo, apaziguaram um pouco a minha inquietação e as minhas dúvidas. Foi assim que entrei para o seminário menor. A minha primeira impressão foi desagradável. Era um grande edifício, triste, de estilo napoleónico, com longos corredores sombrios e dormitórios enormes. Quantas vezes os percorri em forma e em silêncio, com as mãos atrás das costas, sob o olhar severo de um padre, que espreitava ao mais pequeno murmúrio. Éramos vigiados com extrema severidade e o grande receio de todo o corpo docente, era que houvesse entre nós amizades particulares. No recreio, tinhamos de brincar juntos. Se um de nós ficava de lado a reflectir ou a brincar sozinho, era imediatamente acusado de ter maus pensamentos. Quando, em vez de um só, eram dois, o caso era ainda mais grave. Era impossível ter um companheiro, um amigo, pois qualquer relação preferencial era considerada como doentia. No dormitório tínhamos de dormir com as mãos fora da roupa…

– Tens pensamentos maus?

Silêncio interrogativo da minha parte.

– Deixas divagar o teu espírito?

– Sim, às vezes isso acontece. Penso naquilo que gostaria de fazer. Gosto de trabalhos manuais. Gostava de ser carpinteiro.

– Tocas no teu corpo?

Após um silêncio que eu pressenti como ameaça, o padre mandou-me embora, dando-me por penitência rezar duas ave-marias.

 Durante todo este período trabalhei muito. Era o primeiro da turma. Isso granjeou-me alguma consideração por parte dos meus condiscípulos e dos meus superiores. Quando voltava a casa, tinha a impressão de ser um ser à parte. A minha mãe beijava-me na testa, o meu pai apertava-me a mão. Nunca cheguei a saber se ele estava de acordo com a minha vocação. Ele nunca dava a sua opinião. Durante as minhas estadas em casa, o prior da freguesia vinha visitar-nos regularmente. Interessava-se muito pelo bom resultado dos meus estudos e felicitava-me apertando-me a orelha.

Conservo a recordação de uma infância solitária; não tinha um amigo no seminário menor; não tinha um amigo quando vinha de férias. Via com nostalgia as crianças da vizinhança baterem-se entre si, correr, gritar no jardim. A minha dignidade de seminarista não me permitia participar nessas coisas. Dava grandes passeios solitários pelos campos. Por vezes meu pai acompanhava-me. Ia sempre calado a apertava-me a mão com força. Apontava com a bengala algumas flores ou arbustos e dizia-me o nome deles em latim. Nunca tivemos uma única conversa.

Quando os meus primos vinham a minha casa sentia que eles me admiravam, mas não se sentiam à vontade comigo. De quando em quando, tínhamos direito a jogar ao dominó ou à batalha naval. Para mim era um ponto de honra ganhar todas as partidas. Na verdade não tinha qualquer outro meio de exprimir a minha agressividade.

As férias grandes eram para mim uma provação particularmente penosa. Todas as manhãs ia ajudar à missa das sete e depois ajudava o sacristão a arrumar os paramentos. O sacristão era um velho militar reformado. Foi ele talvez o único juntamente com meu pai, a perceber a minha tristeza e o meu mal-estar. Depois da missa levava-me muitas vezes a sua casa, para me mostrar algum troféu que trouxera das suas campanhas. Tinha um magnífico sabre que deve ter cortado algumas cabeças. Via-me no recreio do seminário menor a cortar a cabeça dos meus condiscípulos, mas acho que nunca dos meus profesores.

Ao domingo fazia o peditório em todas as missas. No fim da função, o prior apreciava com uma olhadela o conteúdo do saco e manifestava muitas vezes o seu descontentamento: – Unhas-de-fome, no próximo domingo eu lhes direi.

Os peditórios rendiam muito mais quando vinha algum missionário pregar e pedir para as missões. Para o seminário ou para os padres idosos. A sua abundância era directamente proporcional à veemência e às imprecações do pregador.

Eu divertia-me a apreciar quais os argumentos mais rendíveis (ajuizava da rendibilidade pelo número de notas que caiam no saco). A acumulação dos bens materiais, sinal de torpeza e egoísmo e injúria feita à pobreza de Cristo, tinha um êxito nitidamente superior. Mas o mais rendível de todos era a culpabilidade e a angústia: lembro-me de um missionário, robusto e bronzeado, que tinha o dom de encher o meu saco até ao cimo. Utilizava sempre o mesmo género de argumentos: O vosso apego ao dinheiro há-de-vos perder e levar para o Inferno. Estais certos de que o adquiristes honestamente e de que não explorastes o vosso semelhante? Muitos de vós devem ter grandes pesos na consciência. Sabei repartir os vossos bens para obterdes a indulgência do Senhor.

Todas estas verificações me deixavam vagamente inquieto. Este apelo à má consciência provocavam em mim um certo mal-estar. Sentia que havia ali algo que não estava certo, mas não conseguia saber bem o quê. Conservei sempre um complexo de culpa em relação ao dinheiro, e penso que a isso não são estranhas estas diatribes ao domingo.

– Soglinac, Pierre. – A neurose cristã.

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