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Fé.

“Fé” é um termo que não se consegue definir bem por palavras porque, como “amor”, refere mais do que aquilo que as palavras podem descrever. Quem já sentiu sabe o que a palavra refere mas a quem nunca sentiu o dicionário dará sempre uma ideia incompleta. E este problema é muito apontado como prova do Mistério que estas coisas são; o Amor, a Fé, Deus, etc. Mas este é um problema comum a quase todas as definições fora de sistemas formais como a matemática e a lógica. Passa-se exactamente o mesmo com “salgado”, “verde” ou “cheiro a couves”. Quem já sentiu sabe o que significa e quem nunca sentiu não vai perceber o significado todo. Ainda assim, há aspectos destas coisas que podemos compreender por palavras mesmo que, sem as sentir, fique alguma coisa de fora.

A propósito de um texto do Domingos Faria sobre o ateísmo ser o primeiro passo para a fé (1), perguntei-lhe o que é a fé e para que serve. Não contava com uma definição completa da fé, mas bastava algo que desse uma ideia do seu papel. E a propósito da resposta do Domingos decidi escrever estas minhas impressões acerca da fé e daquilo para que pode servir.

O Domingos respondeu, como responde muita gente, que ter fé é acreditar. Mas não pode ser, por várias razões. A fé é apresentada como razão para crer, e se justificam acreditar porque têm fé a fé tem de ser algo que precede a crença e os leva a acreditar. Além disso, a crença admite facilmente a possibilidade de erro. Muitas vezes até acompanhamos a expressão de uma crença com um “se não me engano”, indicando precisamente que podemos estar enganados naquilo em que acreditamos. Acredito que vai chover ou que a faca do pão está na gaveta, mas se calhar não é verdade. A fé não é assim. É contraditório dizer que se tem fé em algo e ao mesmo tempo admitir que se pode estar enganado, porque tal admissão revelaria falta de fé.

A fé também implica a expressão insistente, e persistente, da crença. Perseverança e fidelidade. Eu acredito que isso dos deuses é treta mas, não tendo fé, se me ameaçarem com a fogueira digo logo que acredito nos deuses que quiserem, como hóstias e invento pecados no confessionário se for preciso. Um grande contraste com a fé dos mártires que optam pela tortura e morte só para persistir na afirmação das suas crenças.

Outra diferença entre acreditar e ter fé é que acreditar faz parte de compreender mas a compreensão exclui a fé. Eu compreendo porque é que o interruptor faz acender a luz, e para compreender isso tenho de acreditar em várias proposições acerca desse circuito eléctrico. Mas uma vez que compreendo não há espaço para ter fé. Se acende sei porquê, e se não acende é um disjuntor desligado ou uma lâmpada fundida. Não é uma crise de fé.

Finalmente, a fé é proposta como uma virtude. Ter fé é ser fiel a uma crença. É moralmente bom, digno e virtuoso. E rejeitar essa crença é mau. É uma falha, uma traição, uma imoralidade. Coisa de quem não é de fiar. O que não se passa com as crenças em geral. Sem a fé, acreditar ou deixar de acreditar são actos moralmente neutros. Não é virtude acreditar que o autocarro vem à hora indicada no horário nem é defeito de carácter deixar de acreditar quando a hora passa e o autocarro não veio.

E não só é virtude ter fé como é defeito de carácter criticar o que acreditam pela fé. Todos reconhecemos que, em geral, as crenças estão sujeitas a críticas e discussão. Mas às crenças motivadas pela fé é dá-se um estatuto especial, com pressões sociais contra a dissensão aberta e muitas vezes até leis que punem quem as criticar demasiado.

Há mais coisas que se poderia dizer acerca da fé e mais coisas que não se consegue pôr em palavras, que só quem tem fé é que pode sentir. Mas estas características da fé já dão uma ideia da sua função. Daquilo para que serve a fé. Serve para manipular as pessoas.

Os requisitos de um mecanismo psicológico para fazer as pessoas acreditar no que quisermos são exactamente estas características da fé. Algo que dê a sensação de justificar a crença em coisas que não se compreende. Que faça sentir essa crença como uma virtude, a descrença como um defeito e a crítica como uma ofensa. Que torne desconfortável admitir a possibilidade de erro. E que motive o crente a defender e propagar a crença mesmo com grande sacrifício pessoal.

Por isso a fé é um excelente vector de clonagem de crenças*. Basta inserir a crença que se quer propagar, infectar alguns hospedeiros e a fé trata de a espalhar pela população. E dá para muitas crenças. Que certas pessoas têm um canal especial de comunicação com um deus, são lideradas por um chefe infalível e não fazem mal às crianças. Que este livro é sagrado. Ou aquele, ou o outro. E não é só com deuses. Dá para produzir católicos e criacionistas, mas também cientólogos, raelianos e sistemas de governo liderados por um morto.

E, ao contrário do que escreveu o Domingos, o ateísmo não é o primeiro passo para a fé. É uma das manifestações da vacina contra esse agente infeccioso.

* É uma analogia um pouco técnica, mas pareceu-me boa demais para deixar passar. De qualquer forma, com a Wikipedia qualquer um pode saber biologia molecular: Cloning vector.

1-Domingos Faria, Ateísmo – um primeiro passo para a Fé.

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