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Equívocos, parte 6.

Continuando a sua série de equívocos acerca do ateísmo, o Alfredo Dinis foca a oposição do ateísmo à religião. «Os ateus nada têm a opor a que cada um acredite subjectivamente em deus e pratique em privado a sua religião. Opõem-se, porém, a todas as manifestações públicas da religião e à sua interferência na vida social, económica e política.»(1) O Alfredo diz que isto é um equívoco porque «se baseia numa ideia equivocada de ser humano que concebe como indivíduo fechado em si mesmo […] Uma tal concepção de ser humano é bem triste, e conduz ao anonimato e à tristeza sobretudo nas cidades.» Pois, como nos outros equívocos até agora, é precisamente o contrário.

«Se partirmos do pressuposto de que o ser humano é estruturalmente aberto à relação», como escreve o Alfredo, percebemos que o diálogo, a crítica livre e a troca franca de ideias fazem parte do que é ser humano. Ser humano inclui participar activamente na comunidade. Não basta ficar-se por acreditar, aceitar ou, como gostam de dizer, “respeitar” as ideias dos outros. Essa participação passiva fica muito aquém daquilo que um humano consegue. Precisa também defender as suas ideias, aprender com as dos outros, ponderar opiniões, apontar erros e criticar aquilo do qual discorda. E é isto que caracteriza o tal “neo-ateísmo” cujo ateísmo é tão velho como a religião mas que, novidade, não fica escondido e calado, participando activamente na comunidade. O que há de novo no ateísmo é defender as suas ideias e exigir uma relação de diálogo racional em que cada posição deve ser justificada e não apenas aceite por “respeito” ou por obra e graça de um espírito supostamente santo.

O Alfredo sugere que os ateus são contra a manifestação pública da religião e que aceitam apenas a prática religiosa privada. Mas eu não defendo que os religiosos tenham de o ser às escondidas nem me oponho a que exprimam as suas crenças ou pratiquem a sua religião em público. O que se passa é um pouco mais complicado.

Eu acho que Zeus não existe e que é completamente inútil rezar a Zeus, independentemente de quantas pessoas o façam, e seja em público ou em privado. Mas se alguém me confessa a sua crença em Zeus numa conversa privada eu não a vou tornar pública só para criticar. Não é que adorar Zeus em privado seja menos disparatado. É apenas que se tiver algo a dizer acerca de uma conversa privada digo-o em privado também.

Em contraste, se houver uma procissão a Zeus pelas ruas de Lisboa e gastarem duzentos mil euros num altar para fazer missas, pedir favores e louvar esse deus então já é legítimo criticar isto publicamente. Mais que um direito, tenho até o dever moral de dizer a quem me quiser ouvir que isto é asneira. Esta crítica é legítima não só por o acto ser público mas precisamente porque não sou um “indivíduo fechado em mim mesmo”. Tal como o Alfredo Dinis, também me preocupo com os outros. E preocupa-me que as pessoas percam tempo e dinheiro a adorar deuses falsos.

Mas isto ainda não é oposição. Discordo que se gaste dinheiro com Zeus, ou em astrólogos, videntes e homeopatas. E critico quem se diga perito nestas coisas como se fossem mais que mera fantasia. Mas não me sinto no direito de me opor no sentido de colocar obstáculos ou criar impedimentos. Se alguém quer gastar dinheiro em disparates posso tentar explicar porque são disparates mas, desde que não seja o meu dinheiro, critico e argumento apenas na esperança de esclarecer e não tento impedir ninguém.

Um caso diferente é governantes do meu país decidirem pagar um altar a Zeus usando o dinheiro que é de todos e sem sequer prestar contas de quanto estão a gastar nisso. Ou o governo obrigar os empregadores a pagar um dia de trabalho a quem faltar ao emprego para ver o Alto Sacerdote de Zeus em visita a Portugal. A isso já me oponho. Admito que a minha oposição é fraca, pois há pouco que possa fazer dentro do que é aceitável na nossa sociedade. Mas posso dizer que me oponho e que votaria contra isto se quisessem saber da minha opinião. Por mim, que pagassem medicamentos a quem precisa em vez de escaparates para deuses.

É claro que o Alfredo dirá que o seu deus é totalmente diferente de Zeus ou de qualquer outro deus. Todos os crentes dizem isso. Até os muitos que acreditaram em Zeus, se ainda cá estivessem. Foi um deus muito popular no seu tempo, e fartaram-se de gastar dinheiro com ele também. Mas este é um aspecto do ateísmo que o Alfredo, como muitos crentes, parece ter dificuldade em entender. O ateísmo não é um movimento com um propósito, muito menos com o propósito de erradicar seja o que for. O ateísmo é a consequência de perceber que as religiões são superstições como as outras. Como qualquer superstição, as religiões têm algumas coisas engraçadas, outras até bem vistas, muitas ridículas e, em geral, estão fundamentalmente enganadas.

Não há aqui um equívoco de achar que os supersticiosos se devem isolar. Qualquer pessoa é livre de ter e exprimir superstições. No entanto, se por um lado cada um tem o direito de acreditar no que quiser, por outro lado tem também o dever de não prejudicar a comunidade com isso. De não esbanjar dinheiro público em altares nem prejudicar a economia por julgar que um homem é o representante oficial do criador do universo. É esse o meu critério. O privado critico em privado, o público critico em público, e só me oponho quando a crença se torna abuso.

1- Companhia dos Filósofos, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo

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