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O pensamento ateu.

Apesar do outro post sobre o assunto (1), continuam a insistir que o pensamento ateu é pouco profundo, que o ateísmo só vive da crítica à religião, que é insensato definirmo-nos por sermos apenas contra uma ideia e assim por diante. Não sendo inteiramente erradas, estas alegações sugerem, no entanto, uma visão demasiado estreita do ateu e do ateísmo porque focam apenas um detalhe de uma atitude muito mais abrangente.

Os crentes chamam-me ateu porque não acredito no que me dizem acerca dos seus deuses. Mas, para mim, isto é como não acreditar quando me dizem que o Pai Natal traz as prendas, que há um monstro em Loch Ness ou que extraterrestres raptam pessoas. Não aceito como verdade aquilo que não for devidamente justificado. E com hipóteses tão extraordinárias o mais razoável é mesmo assumir que são falsas enquanto não haver indícios igualmente extraordinários.

Isto não é um ismo. É bom senso. Quando recebo um email de um general africano a pedir para lhe enviar 50€ para ele transferir cinquenta milhões para a minha conta não confio na promessa e nem sequer fico indeciso acerca da honestidade da proposta. A indecisão levaria a estimar 50% de probabilidade de ser verdade, um risco aceitável nesse caso. Mas o que eu concluo, como a maioria das pessoas, é que é treta. Nem com um ganho possível de um milhão para um arrisco, e quem for consistentemente crente ou agnóstico nestas coisas vai à falência num instante. Felizmente, a maioria rege-se pela regra de rejeitar alegações extraordinárias que não sejam suportadas por evidências extraordinárias.

Para perceber o tal “pensamento ateu” basta perceber que esta atitude não é excepcional. Não se discrimina um deus ou os deuses só para implicar. Por não haver termos equivalente a “ateu” para quem duvida de outras alegações duvidosas, como raptores extraterrestres ou monstros em lagos, parece que ser ateu é um caso à parte. Mas rejeitar como incorrectas as alegações de quem diz saber que deuses existem e como são deriva simplesmente da aplicação homogénea dos critérios para aceitar alegações extraordinárias.

Lamento desiludir quem procura um “pensamento ateu” único e original, mas isto é o mesmo que os crentes fazem. A diferença está só em não abrir excepções arbitrárias. Pensem no nível de evidência que exigiriam para aceitar afirmações como: Maomé é o maior e derradeiro profeta de Deus e o Corão é a palavra divina; “eu” é uma mera ilusão que devemos descartar, desprendendo-nos de tudo para quebrar o ciclo de reencarnações que nos prende a uma falsa identidade e existência; há 75 milhões de anos um maléfico imperador da galáxia trouxe milhares de milhões de extraterrestres para a Terra e chacinou-os aqui com bombas de hidrogénio; Deus encarnou como o filho de um carpinteiro para morrer por nós e agora transubstancia hóstias em pedaços do seu corpo. Qualquer crente razoável duvidará de pelo menos três destas, mesmo que seja muçulmano, budista, cientólogo ou católico. O ateísmo, enquanto rejeição de dogmas religiosos, consiste simplesmente em aplicar à que sobra os mesmos critérios que se aplica a todas as outras hipóteses religiosas, de OVNIs, de astrologia, monstros e emails suspeitos. Se exigirem da vossa religião o mesmo que exigem do resto facilmente perceberão que o “pensamento ateu” é apenas pensamento. É o mesmo de sempre e de todos.

No entanto, isto restringe a discussão ao juízo de afirmações sobre factos. Se bem que “ateu” normalmente refira aquele que rejeita explicitamente os dogmas religiosos, a distinção entre quem tem e quem não tem deuses vai além da mera avaliação de hipóteses. Um factor importante, e independente até dos deuses existirem ou não, é a disposição para a veneração, a participação numa comunidade religiosa, a oração e aquela coisa vaga a que chamam espiritualidade. Isto, talvez mais que o resto, determina se alguém se sente um crente.

Nisto já se pode apontar uma diferença radical entre crentes e ateus. Não é uma diferença de pensamento, no sentido de uma decisão racional e justificável a terceiros, mas sim uma diferença de personalidade. Há quem se sinta bem pensando que obedece a deus, que o ama e que é livre na servidão e obediência, ou coisas do género. E há quem não veja interesse nenhum nisso. Infelizmente, separar assim ateus e crentes cria o problema de classificar os que seguem os rituais da sua religião por hábito e tradição, e que professam os dogmas oficiais, mas que não sentem qualquer ligação a um deus. E suspeito que não sejam poucos.

Por isso proponho que se contorne estes problemas simplificando a discussão. Primeiro, dando menos importância ao termo e à definição de “ateu”. É mais confuso que relevante e não se define ninguém por não acreditar num deus, tal como ninguém se define por não acreditar noutra coisa qualquer. Em segundo lugar, aceitando que a religião não agrada a todos. Uns gostam e outros não. É um género de sauerkraut espiritual. E, finalmente, reconhecendo que qualquer hipótese que se proponha acerca dos deuses é como qualquer outra hipótese acerca da realidade, e deve ser encarada com tanto cepticismo quanto for excepcional.

Editado a 31-3 para corrigir umas gralhas apontadas pelo ricardodabo. Obrigado pela atenção.

1- O elefante

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