Equívocos, parte 2.
Como prometeu, o Alfredo começou a enunciar os equívocos que ele diz ser do ateísmo. Que são equívocos concordo, pelo que estamos parcialmente de acordo. Um, que ele chama «Equívoco geral», é o ateísmo «estar estruturalmente impedido de conseguir os seus objectivos: erradicar a religião.»(1) Diz o Alfredo que isto é porque se o ateísmo critica a religião de forma inteligente só a fortalece e, caso contrário, não a afecta. É claro que isto assume que o deus do Alfredo existe. Porque se não existe, então uma critica inteligente pode revelar que o rei vai nu e acabar com a festa.
Mas o equívoco do Alfredo é julgar que o ateísmo só faz sentido se conseguir erradicar a religião. O ateísmo, pelo menos no meu caso, é apenas uma expressão visível de duas conclusões. Primeira, que os deuses são mais uma de muitas fantasias humanas. E, segunda, que mesmo que houvesse deuses eu continuava responsável pelos meus valores e não era correcto simplesmente fiar-me num livro ou sacerdote. É por isso que não uso deuses para me guiar. É por isso que sou ateu.
No entanto, admito que era bom que a religião desaparecesse. Era bom que, crentes ou descrentes, todos vivessem essas opções como algo pessoal sem ir na conversa dos que dizem estar mais perto dos deuses. Era bom que ninguém se deixasse enganar pelas patranhas da infalibilidade ou da revelação divina calhar só a alguns. Infelizmente, é um desejo pouco realista. Continuará a haver Papas, sacerdotes e Alexandras Solnado porque haverá sempre pessoas a julgar que uns, abençoados, sabem alguma coisa acerca dos deuses.
Outro equívoco é confundir questões acerca dos factos com as definições dos termos. Escreve o Alfredo que «Não há nenhuma prova científica de que a vida humana começa no ‘momento’ da concepção». Mas este problema é apenas a definição do termo “vida humana”. Se for a vida de organismos da nossa espécie, então começou há cerca de 200 mil anos e perpetuou-se, ininterrupta, desde então. Se refere a parte do ciclo de vida correspondente a um organismo da nossa espécie, então a concepção marca o início dessa fase. E se queremos referir a auto-consciência humana, o viver como sentir que se existe, então o início da “vida humana” será talvez perto dos dois anos de idade. Se definirmos o termo com rigor a questão torna-se perfeitamente científica. Só não o é enquanto não soubermos o que queremos dizer.
Mas o equívoco principal do Alfredo é julgar que as provas mais evidentes não podem ser científicas. «Muitas das crenças humanas nas quais se fundamenta a vida das pessoas comuns baseiam-se no testemunho e no crédito que elas se atribuem umas às outras. Não são o resultado positivo de qualquer teste científico a que essas crenças são submetidas. […] Não tenho nenhuma prova científica de que a minha mãe me amou desde que fui concebido no seu seio.»
A ciência não se faz só com tubos de ensaio. É o conhecimento que temos da realidade e a forma como o obtemos. A hipótese “esta mulher ama o seu filho” é tão científica como qualquer outra porque é tão passível como qualquer outra de se submeter ao teste das evidências. Basta pensar numa mulher que queima o seu filho com pontas de cigarro e o abandona num caixote do lixo. Se a tese do Alfredo estivesse correcta nada poderíamos dizer acerca do amor desta mãe pelo seu filho. Mas podemos. É uma hipótese testável, que carece de fundamento empírico e que pode ser refutada pelas evidências.
O ponto principal do Alfredo é este: «Continuarão a perguntar como sabemos cientificamente que os primeiros cristãos não se enganaram a respeito de Cristo. Como se eu devesse fornecer uma prova científica do amor que me têm os meus pais.» O que eu pergunto não é como sabem “cientificamente”. É como sabem, ponto. O advérbio é redundante.
O Alfredo engana-se quando diz que a crença no seu deus está além da ciência porque, sendo uma relação de amor e confiança, não está sujeita a evidências empíricas. Se uma mulher sofre agressões do marido durante anos e continua a dizer que ele a ama e que merece a sua confiança podemos afirmar com fundamento objectivo que ela está enganada. Se os pais criam os filhos com afecto e cuidado, ou se os abandonam com indiferença, ou se os torturam cruelmente temos evidências diferentes que justificam conclusões diferentes acerca do seu amor pelos filhos. O que se infere destas relações depende de evidências empíricas.
Todos os nossos relacionamentos, e em especial os de amor e confiança, têm um fundamento empírico. O amor e a confiança crescem prova a prova, teste a teste. E se nem nos nossos pais ou cônjuges devemos confiar cegamente, insensíveis às provas ou à sua ausência, muito menos devemos fazê-lo com um deus invisível e um livro de histórias antigas.
Em simultâneo no Que Treta!. Parte 1 aqui.
1- Alfredo Dinís, 3-1-10, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo