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Mês: Novembro 2009

12 de Novembro, 2009 Carlos Esperança

Casamentos homossexuais e direitos individuais (Crónica)

Recordo-me bem dos tempos do liceu, quando as hormonas nos impeliram para o bordel da cidade e estreámos a vida sexual pela mão, e o resto, da saudosa e experiente Libânia ou de alguma recém-chegada. O ritual iniciático era feito com medo da polícia. A nossa menoridade podia conduzir a meretriz à prisão e levar-lhe a multa as parcas economias.

Depois era o gozo da transgressão, mais pelo prazer de que os outros soubessem onde já íamos do que pelo deleite fruído onde fôramos.

Lembro o orgulho das prostitutas, com a caderneta que as creditava como profissionais, depois de o Dr. Pereira da Silva, Subdelegado de Saúde, confirmar na revista semanal a ausência de doenças que lhes impedissem o exercício do múnus nas casas da Rua Poço do Gado, a poucos metros do Largo de S. Vicente, na pia cidade da Guarda.

Não me recordo de coimas mas lembro-me de saltos atléticos pela janela das traseiras ao som do assobio do voluntário que ficava de plantão à polícia, normalmente um magala, atento à ronda militar e, por solidariedade com os estudantes, à PSP.

Era um tempo em que o amor era proibido, o puritanismo era indulgente para os rapazes e ferozmente repressivo para raparigas. As aulas de Religião e Moral eram um arremedo de educação sexual onde o padre Cabral e o padre Inácio alertavam para a cegueira e a tuberculose provocadas pela masturbação, para a virtude da castidade e o perigo da leitura dos livros interditos, referidos no «O Index Librorum Prohibitorum», catálogo de livros actualizado pelo Vaticano, e cuja leitura garantia as profundas do Inferno.

De todos os interditos, da moral que nascia na sacristia e desaguava na sarjeta das aulas de Moral, dos preconceitos e superstições, da violência do tempo e das gentes, recordo a sanha feroz contra os homossexuais, então chamados paneleiros, por ódio e por não ser ainda popular a palavra gay.

Na Guarda havia um que era conhecido, um homem amável e tímido, assustado, sempre à espera do perigo iminente, o Sr. Agostinho, de quem as pessoas se afastavam ou que bandos de energúmenos procuravam, para lhe dar uma sova. Às vezes aparecia com o corpo dorido e a face cheia de nódoas enquanto os delinquentes se gabavam da façanha num intervalo de aulas, no liceu. Nunca assisti a um gesto de censura ou a uma única palavra de piedade em defesa da pobre vítima dos fanáticos que lhe esmurravam a cara e o faziam sangrar por dentro.

Algumas vezes assisti à combinação de sovas a um ou outro condiscípulo acusado de tão infamante comportamento sexual e se nunca participei em tão bárbaras expedições punitivas devo-o mais ao medo às sanções domésticas e ao reitor do que aos escrúpulos morais, mas cresci a ruminar uma explicação para tal violência, para tão ignóbil insulto à liberdade individual, apesar de os tempos não serem favoráveis a quaisquer liberdades.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, era ainda recente e ignorada em Portugal. As diferenças eram aberrações a merecer castigo e anomalias a esconjurar.

Foi longo o caminho andado mas, algures, num recanto de Portugal há ainda resquícios do Antigo Testamento que passaram de geração em geração e levaram à dissimulação da orientação sexual de muitos infelizes aterrados com a fúria dos guardiões da moral. A vontade divina foi sempre a desculpa dos que fazem da intolerância profissão de fé e dos que temem tornar-se naquilo que odeiam.

Quantos criminosos não nasceram do medo e da violência de que foram vítimas? Hoje, nas escolas, os professores estão atentos a um fenómeno que sempre existiu mas deixou marcas indeléveis em muitas vítimas – a violência física ou psicológica, intencional e reiterada, praticada por um ou mais alunos, com o objectivo de assustar ou agredir outros alunos, incapazes de se defenderem. Há até um termo técnico para designar esse fenómeno – bullying – mas enquanto não houver percepção da violência homofóbica, previnem-se agressões físicas e verbais por outras razões e deixa-se à solta o bullying homofóbico que destrói a felicidade e o amor-próprio de todos os jovens que têm uma orientação sexual minoritária.

Por isso é tão importante eliminar a discriminação sexual com uma medida legislativa que devolva aos homossexuais o direito à felicidade sem constrangimentos e o escárnio que os persegue.

À memória do Sr. Agostinho, afável e honrado zelador do museu da Guarda, à guisa de reparação da vergonha e das tareias, das dores do corpo e do espírito, a legalização do casamento de indivíduos do mesmo sexo é a justiça póstuma à vítima com a qual não tive a coragem de me solidarizar.

11 de Novembro, 2009 Carlos Esperança

Saramago, crenças e crispação

O tempo passa e a tensão aumenta entre os crentes que usam uma linguagem cada vez mais crispada e intolerante para com o escritor que deu a Portugal um Nobel e enorme prestígio à literatura portuguesa. Basta ver o correio dos leitores de vários jornais e as ameaças e insultos que lhe dirigem.

Os bispos, padres e outros avençados do divino usam uma linguagem mais sonsa e dissimulada mas é igual o ódio que os devora e o ressentimento que manifestam.

Seria interessante, se não fosse perigosa, esta excitação dos católicos com Saramago. Este tem o direito de dizer tudo o que disse e o mais que lhe aprouver e aqueles gozam de igual direito em relação a Saramago e ao ateísmo. Não assustando já as penas do Inferno, uma lucrativa invenção pia que rendeu grossos cabedais, ameaçam agora com a situação de Salman Rushdie, vítima da demência de um aiatola que o condenou à morte por ter criticado o Islão. O que está em causa é a intolerância que em certas latitudes foi contida pelas democracias e em outras ainda anda à solta.

A ICAR abomina o direito ao riso e à felicidade mas é uma fonte de um e de outra. Torna felizes os que acreditam e diverte quem não a leva a sério.

Entre as fogueiras índias e as novenas católicas não há dados que indiciem a supremacia de umas sobre as outras quanto à eficácia na pluviosidade. As penas do chefe índio e o camauro do papa só diferem na estética. Os vestidinhos de seda do pontífice  não se distinguem das vestes dos feiticeiros pelo ridículo, apenas pelo luxo e conforto.

A cigana que lê a sina não é menos eficaz a espantar os maus olhados do que o padre a esconjurar os espíritos malignos e a garantir o Paraíso. Às vezes a clientela é a mesma e procura na água benta o sinergismo das mezinhas e rezas ciganas.

O feiticeiro que prescreve a poção com corno de rinoceronte moído só é mais criticável do que o padre que celebra uma missa de acção de graças e ministra a comunhão porque põe em perigo a extinção da espécie animal, mas a eficácia sobre a convalescença dos doentes ilustres não é diferente, embora faltem estudos comparativos.

O baptismo com água benta é mais inócuo do que a circuncisão, que deixa marcas, ou a excisão que põe em risco a vida e destrói de forma irreversível a felicidade sexual mas todos são rituais iniciáticos.

Não há motivo para não nos rirmos dos rituais religiosos. Poucas encenações são tão hilariantes.

10 de Novembro, 2009 Carlos Esperança

A ICAR e a febre do referendo

Por

José Moreira

A Constituição da República Portuguesa diz claramente que a Igreja está separada do Estado – por muitos engulhos que isso possa fazer quer ao Sr. Aníbal Cavaco Silva quer ao actual presidente da República. Eu admito que aprendi a ler há muitos anos e que posso estar um bocado esquecido; mas se bem me lembro, isso quer dizer, em português decente e escorreito, “cada macaco no seu galho”.

Ou seja, tipo “não te metas na minha vida, que eu não me meto na tua”.

Mas a Igreja não se convence. E vai daí, toca a meter o bedelho eu tudo o que não lhe diga respeito. Faz-me lembrar aqueles tipos baixinhos que se colocam em bicos de pés, para serem vistos, ou aqueles parolos que, às vezes, aparecem na televisão com os letreiros “mãe, estou aqui”.

Concorde-se ou não, o Governo pretende legalizar, pelo casamento, as uniões de facto entre pessoas do mesmo sexo. Para quem ainda não percebeu, e parece que a turba sotainada demora a perceber, o Governo quer permitir casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Sim, eu escrevi casamento civil, porque não me passa pela cabeça que o Governo vá exigir casamento religioso. Era absurdo e completamente estúpido. Tão absurdo e tão estúpido como a Igreja querer forçar o referendo às intenções do Governo. Pela simples razão de que a democracia, palavra que os senhores clérigos desconhecem, implica reciprocidade. E não me recordo de o Governo ter querido referendar a canonização do guerreiro Nuno Álvares Pereira, oportuna e escandalosamente transformado em oftalmologista pela ICAR, por ter curado o olho esquerdo da D. Guilhermina de Jesus, que se queimou com um salpico de azeite ao fritar peixe.

Que a Igreja queira proibir os casamentos religiosos entre pessoas do mesmo sexo, é um direito que legitimamente lhe assiste. Tal como como é legítimo o direito de o Governo português pretender legalizar contratualmente (há quem lhe chame casamento) essa mesma união.

Haja decoro, se faz favor.

10 de Novembro, 2009 Ricardo Alves

«As Tardes da Júlia», às 14 horas

Hoje, às 14 horas, estarei no programa da TVI «As Tardes da Júlia» para discutir laicidade e crucifixos com um sacerdote católico.

9 de Novembro, 2009 Carlos Esperança

Todos somos Abéis e Caíns

Por

Onofre Varela

onofre_varela“Criticar os costumes dos homens sem atacar ninguém em particular, será, realmente, morder? Não será antes o desejo de ensinar ou aconselhar? Além disso, quantas vezes me tenho criticado a mim próprio? Uma sátira que não poupa nenhuma das condições humanas não pretende atacar homem algum em particular, mas sim os vícios de todos.
Se alguém se ergue a gritar que foi ofendido, confessa que se sente culpado, ou, pelo menos, que em segredo se inquieta”.

(Erasmo de Roterdão, in “Elogio da Loucura”)

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O tema Religião é delicado, principalmente quando abordado sob o ponto de vista de quem não alinha em credos religiosos. Corre-se sempre o risco de levar os crentes a sentirem-se ofendidos na sua fé. Isto acontece invariavelmente, por muito cuidado que se tenha na escolha das palavras e por muito que se repita que a intenção primeira não é beliscar religiosidades, mas reflectir sobre a fenomenologia que conduziu o raciocínio do Ser Humano para a criação dos deuses, e de como tal prática acabou por gerar e desenvolver culturas, sistemas de organização política e social, e fomentar uma indústria e um comércio da Religião e da fé, aprisionando consciências.

Neste Ocidente democrático e civilizado, o respeito pelas crenças não impede a expressão crítica. Era só o que faltava obrigarmo-nos ao silenciamento e à auto-censura para não ferirmos sensibilidades tão susceptíveis de rotura, só porque os clérigos estão (mal) habituados à ditatorial proibição da abordagem de temas que eles consideram intocáveis e propriedade sua, como acontece com a Bíblia (que não é pertença do Vaticano mas Património da Humanidade), da qual não aceitam leitura diversa daquela que a Igreja difunde formatada de acordo com os seus interesses. Respeitemos mas opinemos.

Um ateu não é mais do que um crítico das religiões, sem se obrigar a papar missas, tal como um crítico cinematográfico, ou literário, critica cinema ou literatura sem se obrigar a filmar e a escrever. Se a religiosidade de cada um é coisa sagrada, a liberdade de expressão é, também, igualmente sagrada. Nem o ateu, nem o religioso são donos da verdade. Nas suas deambulações filosóficas sobre o conceito civilizacional designado Deus, o ateu pode chegar a conclusões tão certas, ou tão erradas, quão certos ou errados estão os que acreditam na intervenção de uma divindade no destino dos homens… porque errare humanun est. Não há infalíbilidades em questões filosóficas e muito menos nos discursos religiosos. Todos nós, incluindo o Papa, emitimos opiniões que podem ser tão certas como certo é a chuva molhar, ou tão falíveis quanto o Orçamento Geral do Estado.

Há (e é muito bom que haja) um pensamento à margem do “politicamente-instituído-como-correcto”, que resulta da observação crítica e do constante questionamento daquilo que nos é mostrado como bem e certo, mas no que se pode detectar algum mal ou erro, e daí nasce a polémica. Todas as polémicas são necessárias e úteis, mas tornam-se desinteressantes quando aquilo que as motiva não é mais do que paixão desmedida. Todos nós sabemos, por experiências vividas na juventude, que as paixões, em regra, são muito emotivas, pouco racionais, e habitualmente têm um prazo de validade curtíssimo… tal como o iogurte e os ovos moles.

O tema Deus é interessante, absorvente, e por isso pode cair na teia das paixões empoladas, terreno onde se corre o risco de se não encontrar uma porta racional por onde se entre ou saia com dignidade e elevação intelectual e moral. A paixão é como o vinho: ou se consome com regra, moderação e racionalidade, usofruindo do prazer que a bebida produz, ou se emborca sem medida até à bebedeira total, correndo-se o risco de tomar atitudes nada dignificantes.

A Bíblia tem muito peso na formação dos povos ocidentais porque todos nós fomos educados nos seus preceitos. É um conjunto de registos contendo algumas narrativas históricas à mistura com conselhos práticos, leis sociais, regras de comportamento e de higiene, poesia, conflito, crimes de vária índole, muita ficção, e fabulosas estórias para a implementação da também fabulosa ideia do monoteísmo. A difusão de tal ideia pertence aos Hebreus, e foi verdadeiramente revolucionária para o tempo em que existia um deus para cada hora do dia! O povo hebreu criou o conceito de um só deus, com o valor de todos os outros, condensado e em versão single. Tal ideia foi iniciada por Abraão, e ao longo de mais de 1.500 anos de História acabou sendo imposta por Judeus, Cristãos e Muçulmanos como Verdade Universal a ser atendida por todos com muito temor e adoração desmedida. Mas a verdade é que o valor histórico dos textos bíblicos onde a ideia é registada, é muito relativo e não inteiramente fiável.

Na existência real de um deus, e na sua intervenção junto dos homens, é que reside a questão, porque tal coisa não tem substância, não é credível à luz de qualquer lei física, e só pode ser afirmada pela fé, a qual não tem qualquer valor para além dela mesma.

O estudo sério, histórico e arqueológico, das narrativas bíblicas é recente. Foi em 1843 que o arqueólogo francês Paul Émile Botta, escavando em Korsabad, na Mesopotâmia, encontrou baixos relevos com inscrições descrevendo as campanhas do rei assírio Sargão II contra o reino de Israel na conquista de Samarina, tal como na Bíblia é referido (Isaías, 20). Só desde então os textos bíblicos saíram da incógnita de mosteiros e sacristias para serem estudados por cientistas de vários ramos da Ciência. Mercê destas consequentes novas interpretações dos textos ditos sagrados, e de outras leituras por credos não católicos, a Igreja reagiu, recentemente (7 de Outubro de 2008), através do cardeal canadense Marc Ouellet, relator geral do
sínodo dos bispos, solicitando ao papa uma encíclica sobre “a interpretação das Escrituras, por haver muitas divergências interpretativas” e algumas delas “divergirem da visão que o Magistério do Papa e dos bispos oferecem sobre a Bíblia”!… Como que se o papa fosse o autor das Escrituras, ou tivesse procuração dos seus escribas, ou a exclusividade dos direitos universais para a sua interpretação!…

Obviamente que a proposta não é ingénua. Ela pretende que a Bíblia deixe de ser interpretada nos meios científicos “apenas sob o ponto de vista académico, pois a Palavra de Deus penetra em todas as dimensões da pessoa”, e legitime, assim, as interpretações de fé colocando-as ao mesmo nível dos estudos científicos!… O que não passa de uma esperteza saloia cardinalícia.

É evidente que o estudo de tais matérias deve ser deixado a cargo de especialistas formados nos diversos ramos da Ciência inerentes à tarefa da interpretação dos textos bíblicos enquanto objecto arqueológico e documento testemunhal da evolução do pensamento, e não apenas aos teólogos que funcionam como advogados de defesa em causa própria.

Dito isto, e terminando esta minha reflexão, em verdade vos digo: todos nós, incluindo o escritor e Prémio Nobel José Saramago, somos livres de aproveitar esta porta aberta por Marc Ouellet — que pretende aferir, paralelamente à Ciência neutra e conclusiva, os entendimentos religiosos —, para também entrarmos por ela e fazermos a nossa interpretação pessoal da Bíblia, cuja liberdade foi legalizada pelo cardeal (embora não precisassemos dela para o fazermos)! Nesse sentido, direi que Abel e Caím protagonizam, metaforicamente, um exemplo ilustrativo do natural e humano espírito de inveja e ciúme — que nos retrata a todos, sem excepção —, e que também pode configurar um tipo de crime com motivações económicas, já que Caím matou o irmão Abel por interesses relacionados com as partilhas da terra e do gado.

Entenda-se: se, pela fé, a um religioso é dada legitimidade para interpretar os textos bíblicos de acordo com o seu entendimento místico, divorciado das interpretações históricas e científicas, então todos nós podemos reivindicar a mesma legitimidade de interpretar os mesmos textos baseando-nos no raciocínio de ateu, de agnóstico, ou de, simplesmente, curioso, divorciado de todas as interpretações de fé que, como se sabe, só têm valor (e muito relativo) no seio das respectivas crenças. Para além do mais, note-se que aquele que lê a Bíblia apenas pelo prisma da crença religiosa… na verdade não sabe nada da Bíblia!… simplesmente porque crer não é saber.

Onofre Varela

8 de Novembro, 2009 Fernandes

Os suíços têm medo dos minaretes.

Os suíços têm medo dos minaretes e não são os únicos na Europa.

A Suíça vai referendar a construção de minaretes, as torres altas das mesquitas que simbolizam a presença muçulmana. Construir mesquitas ou erguer minaretes nos países europeus nem sempre tem sido fácil. A invasão já começou, a intolerância também, por isso é que notícias como esta, em que uma imigrante é agredida por não usar véu, em Espanha, começam a ser frequentes, onde fantasmas do franquismo permanecem e onde a Igreja  teve imensa responsabilidade na Guerra Civil, e persiste a influência da Igreja Católica na Europa, particularmente em Itália, por isso Berlusconi recusa tirar crucifixos das escolas. Haja pelo menos esperança na procura do fim da “cultura da impunidade” no Médio Oriente.

8 de Novembro, 2009 Ludwig Krippahl

Relacionamentos e margens de erro

Quando era miúdo tive uma professora de português de quem não gostava nada. A princípio. Mas, num momento de inspiração, ocorreu-me que aquilo de que eu não gostava era apenas uma ideia. Todo esse meu desagrado tinha por objecto a opinião que eu formara acerca de alguém que mal conhecia. A epifania serviu de imediato para tornar aquelas aulas muito mais suportáveis. E, a longo prazo, além de ainda me lembrar o que é o pretérito imperfeito do conjuntivo, tem me ajudado muito recordar que, salvo raras excepções, a ideia que formo das pessoas tem uma grande margem de erro. Há muito pouca gente na nossa vida que conheçamos suficientemente bem para ignorar lacunas na informação e estimativas erradas.

No relacionamento com os outros podemos assumir que os juízos que fazemos são fiáveis e evitar desilusões julgando os outros de forma mais pessimista. Ou podemos assumir o melhor das outras pessoas, dar-lhes o benefício da dúvida dentro da margem de erro e precavermo-nos contra dissabores tendo consciência que esse juízo é muito incerto. A experiência com a professora de português levou-me a optar pela segunda alternativa. É mais agradável, e mais justo, desconfiar da minha capacidade de julgar os outros em vez de ser pessimista acerca das pessoas.

Por isso concordo, em parte, com o que me descrevem os crentes quando dizem confiar no seu deus. Dão-lhe o benefício da dúvida. Se não conhecemos alguém, podemos assumir que é boa gente. Mas só concordo em parte porque é preciso considerar que podemos formar um juízo errado. Se um estranho me toca à porta eu assumo que é boa pessoa e incapaz de maltratar crianças. Mas como posso estar enganado acerca disto não vou deixar que leve os meus filhos a passear sem mais informação que reduza a tal margem de erro. Para isso já tem de ser alguém que eu conheça o suficiente para que, além da confiar que é boa pessoa, também confie nesse juízo que fiz dele.

E é nisto que os crentes se espalham. A religião, dizem-me, é uma relação com Deus. Ou com um deus, pelo menos. É confiar nesse deus. Mas o que quer que sintam por esse deus será sempre função da ideia que formaram dele. Ou dela. E o problema é não terem qualquer informação onde basear essa ideia. Eu, ao menos, tinha aulas com a professora de português. Não era suficiente para saber se era boa ou má pessoa, mas sempre sabia alguma coisa acerca dela. E neste universo não se vê vestígio de qualquer divindade. Tudo o que se pensava indicar intervenção divina tem vindo a desaparecer, como a magia do ilusionismo quando se explica o truque. Acerca do deus, da deusa ou dos deuses, nenhum religioso tem informação. Só especulação.

Por isso não me convencem quando dizem que se tem de interpretar o Antigo Testamento de uma maneira especial por esse deus não ser como os hebreus julgavam. Concordo que o Antigo Testamento relata o relacionamento dos hebreus com o seu deus, e que o relacionamento dos católicos com o deus católico é diferente daquele que os hebreus tinham com o seu. O dos católicos é chatinho mas é menos ameaçador, se descontarmos a tortura eterna com que castiga quem discorde dele. Mas ninguém, nem católicos, nem hebreus, nem seja quem for, faz ideia de como Deus é. Não se sabe sequer se existe tal coisa, quanto mais saber o que quer, o que manda, de que gosta ou desgosta ou como se deve interpretar o que se escreve acerca dele.

Em suma, até compreendo que queiram confiar num deus. Quando não tenho informação em contrário acerca de alguém também prefiro pensar que é boa pessoa. Mas neste caso é um exagero. A ideia que fazem do respectivo deus – e, no fundo, é sempre com a ideia que nos relacionamos – é fruto unicamente da imaginação dos crentes. Nem sequer é alguém que encontrem de vez em quando, nas aulas de português ou assim, porque na missa só está lá o padre e o cenário. Se estivesse lá um deus notava-se bem.

E este exagero nem é o pior. Na verdade, se é exagero ou não é um juízo subjectivo, e admito podermos discordar disto por divergências de valor. É legítimo alguém querer confiar tanto num ser que até confia, sem evidências, que esse ser existe. É estranho, mas está no seu direito. O que é objectivamente incorrecto é ignorar a margem de erro. Que é enorme. Infinita. Todas as religiões que há, que houve e que algum dia inventem cabem nessa margem de erro, porque não há quaisquer dados que a reduzam.

Daí que as minhas críticas não sejam por crerem, ou quererem confiar, naquilo que nem sabem se existe. O que critico é dizerem que sabem. Que sabem que deus é assim e assado, que aquele trecho deve ser interpretado daquela maneira, que condena o preservativo, transubstancia a hóstia, engravidou Maria e milhentos outros pontos tirados ao acaso do grande chapéu das margens de erro. O que critico é venderem erro como se fosse conhecimento.

Em simultâneo no Que Treta!

8 de Novembro, 2009 Fernandes

A Bíblia (III)

Os Dez Mandamentos:

(cf. Êxodo 20:3-17)

Os cristãos dizem que os Dez Mandamentos são o fundamento da lei.

Nada poderia ser mais absurdo. Muito antes de esses mandamentos aparecerem, havia códigos legislativos na Índia e no Egipto – leis contra o assassínio, o perjúrio, o furto, o adultério e a fraude. Tais leis, são tão antigas quanto a sociedade humana; tão antigas quanto o amor à vida; tão antigas quanto a noção de prosperidade e o amor humano.

Nos Dez Mandamentos todas as ideias boas são antigas; todas as novas são tolas. Se Jeová fosse civilizado, teria dispensado o mandamento sobre guardar os sábados para o santificar, e no seu lugar diria: “Não escravizarás o teu próximo”.

Teria deixado de lado aquele sobre imagens esculpidas, e diria: “Não provocarás guerras de extermínio”.

Se Jeová fosse civilizado, os Dez Mandamentos seriam melhores.

Tudo o que chamamos de progresso, emancipação do homem, a substituição da pena de morte pela prisão e da prisão pela fiança, a liberdade de expressão, os direitos de consciência; em suma, tudo que favoreceu o desenvolvimento da civilização humana; todos os frutos da investigação, da observação, da experimentação e do livre-pensamento; tudo que o homem conquistou em benefício do próprio homem desde o fim da Idade das Trevas – de tudo isso prescindiu o Velho Testamento.

Permitam-me ilustrar a moral, a misericórdia, a filosofia, a poesia e a bondade do Velho Testamento:

A história de Acã:

(cf. Josué 7)

Josué tomou a cidade de Jericó. Antes da queda da cidade ele declarou que todos os despojos deveriam ser entregues ao Senhor. Apesar dessa ordem, Acã escondeu numa capa um pouco de prata e ouro. Posteriormente, Josué tentou tomar a cidade de Ai. Fracassou e muitos soldados foram mortos. Josué procurou a causa da derrota e descobriu que Acã havia escondido numa capa, duzentos siclos de prata e uma cunha de ouro.

Diante disso, Acã confessou.

Imediatamente Josué tomou Acã, seus filhos, filhas, esposa, bois e ovelhas, apedrejou-os até a morte e queimou os seus corpos.

Nada indica que seus filhos e filhas haviam cometido qualquer crime. Certamente, os bois e ovelhas não deveriam ser apedrejados até à morte pelo crime do seu proprietário. Essa foi a justiça, a clemência de Jeová!

Após Josué ter cometido esse crime, com a ajuda de Jeová, capturou a cidade de Ai.

É esta uma história bonita para ensinar a uma criança?

A história de Eliseu:

(cf. II Reis 2:23-24)

“Então subiu dali a Betel; e, subindo ele pelo caminho, uns meninos saíram da cidade, e zombavam dele, dizendo: Sobe, calvo; sobe, calvo!” “E, virando-se ele para trás, os viu, e os amaldiçoou em nome do Senhor. Então duas ursas saíram do bosque, e despedaçaram quarenta e dois daqueles meninos.”

Essa foi a obra do bom Deus – do misericordioso Jeová! Esta é a tal poesia de que tanto ouvimos falar aos “especialistas bíblicos”.

Linda história para educar as nossas crianças!