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  • 12 de Novembro, 2009
  • Por Carlos Esperança
  • Literatura

Casamentos homossexuais e direitos individuais (Crónica)

Recordo-me bem dos tempos do liceu, quando as hormonas nos impeliram para o bordel da cidade e estreámos a vida sexual pela mão, e o resto, da saudosa e experiente Libânia ou de alguma recém-chegada. O ritual iniciático era feito com medo da polícia. A nossa menoridade podia conduzir a meretriz à prisão e levar-lhe a multa as parcas economias.

Depois era o gozo da transgressão, mais pelo prazer de que os outros soubessem onde já íamos do que pelo deleite fruído onde fôramos.

Lembro o orgulho das prostitutas, com a caderneta que as creditava como profissionais, depois de o Dr. Pereira da Silva, Subdelegado de Saúde, confirmar na revista semanal a ausência de doenças que lhes impedissem o exercício do múnus nas casas da Rua Poço do Gado, a poucos metros do Largo de S. Vicente, na pia cidade da Guarda.

Não me recordo de coimas mas lembro-me de saltos atléticos pela janela das traseiras ao som do assobio do voluntário que ficava de plantão à polícia, normalmente um magala, atento à ronda militar e, por solidariedade com os estudantes, à PSP.

Era um tempo em que o amor era proibido, o puritanismo era indulgente para os rapazes e ferozmente repressivo para raparigas. As aulas de Religião e Moral eram um arremedo de educação sexual onde o padre Cabral e o padre Inácio alertavam para a cegueira e a tuberculose provocadas pela masturbação, para a virtude da castidade e o perigo da leitura dos livros interditos, referidos no «O Index Librorum Prohibitorum», catálogo de livros actualizado pelo Vaticano, e cuja leitura garantia as profundas do Inferno.

De todos os interditos, da moral que nascia na sacristia e desaguava na sarjeta das aulas de Moral, dos preconceitos e superstições, da violência do tempo e das gentes, recordo a sanha feroz contra os homossexuais, então chamados paneleiros, por ódio e por não ser ainda popular a palavra gay.

Na Guarda havia um que era conhecido, um homem amável e tímido, assustado, sempre à espera do perigo iminente, o Sr. Agostinho, de quem as pessoas se afastavam ou que bandos de energúmenos procuravam, para lhe dar uma sova. Às vezes aparecia com o corpo dorido e a face cheia de nódoas enquanto os delinquentes se gabavam da façanha num intervalo de aulas, no liceu. Nunca assisti a um gesto de censura ou a uma única palavra de piedade em defesa da pobre vítima dos fanáticos que lhe esmurravam a cara e o faziam sangrar por dentro.

Algumas vezes assisti à combinação de sovas a um ou outro condiscípulo acusado de tão infamante comportamento sexual e se nunca participei em tão bárbaras expedições punitivas devo-o mais ao medo às sanções domésticas e ao reitor do que aos escrúpulos morais, mas cresci a ruminar uma explicação para tal violência, para tão ignóbil insulto à liberdade individual, apesar de os tempos não serem favoráveis a quaisquer liberdades.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, era ainda recente e ignorada em Portugal. As diferenças eram aberrações a merecer castigo e anomalias a esconjurar.

Foi longo o caminho andado mas, algures, num recanto de Portugal há ainda resquícios do Antigo Testamento que passaram de geração em geração e levaram à dissimulação da orientação sexual de muitos infelizes aterrados com a fúria dos guardiões da moral. A vontade divina foi sempre a desculpa dos que fazem da intolerância profissão de fé e dos que temem tornar-se naquilo que odeiam.

Quantos criminosos não nasceram do medo e da violência de que foram vítimas? Hoje, nas escolas, os professores estão atentos a um fenómeno que sempre existiu mas deixou marcas indeléveis em muitas vítimas – a violência física ou psicológica, intencional e reiterada, praticada por um ou mais alunos, com o objectivo de assustar ou agredir outros alunos, incapazes de se defenderem. Há até um termo técnico para designar esse fenómeno – bullying – mas enquanto não houver percepção da violência homofóbica, previnem-se agressões físicas e verbais por outras razões e deixa-se à solta o bullying homofóbico que destrói a felicidade e o amor-próprio de todos os jovens que têm uma orientação sexual minoritária.

Por isso é tão importante eliminar a discriminação sexual com uma medida legislativa que devolva aos homossexuais o direito à felicidade sem constrangimentos e o escárnio que os persegue.

À memória do Sr. Agostinho, afável e honrado zelador do museu da Guarda, à guisa de reparação da vergonha e das tareias, das dores do corpo e do espírito, a legalização do casamento de indivíduos do mesmo sexo é a justiça póstuma à vítima com a qual não tive a coragem de me solidarizar.

Perfil de Autor

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- Ex-Presidente da Direcção da Associação Ateísta Portuguesa

- Sócio fundador da Associação República e laicidade;

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- Colunista do semanário «O Despertar» - Coimbra:

- Autor do livro «Pedras Soltas» e de diversos textos em jornais, revistas, brochuras e catálogos;

- Sócio N.º 1177 da Associação Portuguesa de Escritores

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