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Relacionamentos e margens de erro

Quando era miúdo tive uma professora de português de quem não gostava nada. A princípio. Mas, num momento de inspiração, ocorreu-me que aquilo de que eu não gostava era apenas uma ideia. Todo esse meu desagrado tinha por objecto a opinião que eu formara acerca de alguém que mal conhecia. A epifania serviu de imediato para tornar aquelas aulas muito mais suportáveis. E, a longo prazo, além de ainda me lembrar o que é o pretérito imperfeito do conjuntivo, tem me ajudado muito recordar que, salvo raras excepções, a ideia que formo das pessoas tem uma grande margem de erro. Há muito pouca gente na nossa vida que conheçamos suficientemente bem para ignorar lacunas na informação e estimativas erradas.

No relacionamento com os outros podemos assumir que os juízos que fazemos são fiáveis e evitar desilusões julgando os outros de forma mais pessimista. Ou podemos assumir o melhor das outras pessoas, dar-lhes o benefício da dúvida dentro da margem de erro e precavermo-nos contra dissabores tendo consciência que esse juízo é muito incerto. A experiência com a professora de português levou-me a optar pela segunda alternativa. É mais agradável, e mais justo, desconfiar da minha capacidade de julgar os outros em vez de ser pessimista acerca das pessoas.

Por isso concordo, em parte, com o que me descrevem os crentes quando dizem confiar no seu deus. Dão-lhe o benefício da dúvida. Se não conhecemos alguém, podemos assumir que é boa gente. Mas só concordo em parte porque é preciso considerar que podemos formar um juízo errado. Se um estranho me toca à porta eu assumo que é boa pessoa e incapaz de maltratar crianças. Mas como posso estar enganado acerca disto não vou deixar que leve os meus filhos a passear sem mais informação que reduza a tal margem de erro. Para isso já tem de ser alguém que eu conheça o suficiente para que, além da confiar que é boa pessoa, também confie nesse juízo que fiz dele.

E é nisto que os crentes se espalham. A religião, dizem-me, é uma relação com Deus. Ou com um deus, pelo menos. É confiar nesse deus. Mas o que quer que sintam por esse deus será sempre função da ideia que formaram dele. Ou dela. E o problema é não terem qualquer informação onde basear essa ideia. Eu, ao menos, tinha aulas com a professora de português. Não era suficiente para saber se era boa ou má pessoa, mas sempre sabia alguma coisa acerca dela. E neste universo não se vê vestígio de qualquer divindade. Tudo o que se pensava indicar intervenção divina tem vindo a desaparecer, como a magia do ilusionismo quando se explica o truque. Acerca do deus, da deusa ou dos deuses, nenhum religioso tem informação. Só especulação.

Por isso não me convencem quando dizem que se tem de interpretar o Antigo Testamento de uma maneira especial por esse deus não ser como os hebreus julgavam. Concordo que o Antigo Testamento relata o relacionamento dos hebreus com o seu deus, e que o relacionamento dos católicos com o deus católico é diferente daquele que os hebreus tinham com o seu. O dos católicos é chatinho mas é menos ameaçador, se descontarmos a tortura eterna com que castiga quem discorde dele. Mas ninguém, nem católicos, nem hebreus, nem seja quem for, faz ideia de como Deus é. Não se sabe sequer se existe tal coisa, quanto mais saber o que quer, o que manda, de que gosta ou desgosta ou como se deve interpretar o que se escreve acerca dele.

Em suma, até compreendo que queiram confiar num deus. Quando não tenho informação em contrário acerca de alguém também prefiro pensar que é boa pessoa. Mas neste caso é um exagero. A ideia que fazem do respectivo deus – e, no fundo, é sempre com a ideia que nos relacionamos – é fruto unicamente da imaginação dos crentes. Nem sequer é alguém que encontrem de vez em quando, nas aulas de português ou assim, porque na missa só está lá o padre e o cenário. Se estivesse lá um deus notava-se bem.

E este exagero nem é o pior. Na verdade, se é exagero ou não é um juízo subjectivo, e admito podermos discordar disto por divergências de valor. É legítimo alguém querer confiar tanto num ser que até confia, sem evidências, que esse ser existe. É estranho, mas está no seu direito. O que é objectivamente incorrecto é ignorar a margem de erro. Que é enorme. Infinita. Todas as religiões que há, que houve e que algum dia inventem cabem nessa margem de erro, porque não há quaisquer dados que a reduzam.

Daí que as minhas críticas não sejam por crerem, ou quererem confiar, naquilo que nem sabem se existe. O que critico é dizerem que sabem. Que sabem que deus é assim e assado, que aquele trecho deve ser interpretado daquela maneira, que condena o preservativo, transubstancia a hóstia, engravidou Maria e milhentos outros pontos tirados ao acaso do grande chapéu das margens de erro. O que critico é venderem erro como se fosse conhecimento.

Em simultâneo no Que Treta!

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