2 de Outubro, 2009 Ludwig Krippahl
Crenças e diferenças
No sentido lato, a crença é a atitude de considerar uma proposição verdadeira. E, neste sentido, todos temos crenças. Mas a ideia que todos somos crentes só por aceitarmos algumas proposições esconde uma diferença intuitivamente evidente entre, por exemplo, crer que que um protão tem 1836 vezes a massa de um electrão e crer que Maria deu à luz ainda virgem. A posição tradicional era que havia uma grande diferença. Enquanto a crença acerca da massa do electrão deriva de capacidades humanas limitadas, a virgindade de Maria é revelada por um deus infalível e merece a nossa total confiança. Felizmente, esta posição está hoje relegada às franjas mais fundamentalistas*.
Os crentes mais moderados defendem que as crenças científicas e religiosas estão ao mesmo nível, assentando as primeiras na ideia de um universo regular e observável e as últimas num deus que revela os seus mistérios. De resto, em ambos os casos se confia em alguma fonte, seja observação seja revelação, para decidir que proposições aceitar ou rejeitar. Ou seja, somos todos igualmente crentes, apenas cremos em coisas diferentes**. Finalmente, a terceira posição, que também defendo, é que há uma diferença entre estas crenças e não é verdade que a fé seja o melhor caminho. No entanto, muitos defendem esta posição alegando que a diferença está no fundamento das crenças e confundindo a crença com a proposição em que se crê. Isto falha a diferença mais importante e é facilmente refutável. Por exemplo, eu obtive a minha crença acerca da massa relativa do protão e do electrão lendo o valor num livro. Exactamente o que fez o cristão que acredita na virgindade de Maria. E de nada serve alegar que uma proposição é mais fundamentada que outra porque isso é apenas mais uma crença. O religioso até pode achar que a sua é a mais fundamentada. O melhor é desenlear os dois conceitos.
A proposição é uma descrição abstracta e impessoal de um aspecto da realidade. “O protão tem 1836 vezes a massa do electrão” ou “Maria é virgem”, por exemplo. Enquanto a crença é a atitude pessoal de aceitar uma proposição. Não devemos confundir o hipotético fundamento da proposição, que possa existir algures na mente de um deus ou na comunidade científica, com o fundamento da crença que terá de ser aquilo que a pessoa tem à sua disposição no momento em que decide acreditar. Fazendo esta distinção, percebe-se que a minha crença acerca da massa do electrão não é mais fundamentada que a crença do cristão acerca da virgindade de Maria, pois ambos formámos as nossas crenças com base no que lemos algures e nenhum de nós dispõe dos dados necessários para fundamentar qualquer uma destas proposições.
A diferença não está nem no fundamento que possa haver para a proposição, visto que não o usámos para formar a crença, nem no fundamento das crenças, que é análogo em ambos os casos. A diferença está na crença em si. Não há só uma forma de aceitar algo como verdadeiro. É possível crer de maneiras diferentes. E eu creio que o protão tem uma massa 1836 vezes maior que a do electrão, reconhecendo que não sei substanciar devidamente essa hipótese mas na condição de poder fazê-lo se o quiser. Ou seja, na condição de haver resultados que suportam a proposição, de eu poder ter acesso a esses resultados e que, se me der ao trabalho de os compreender, de concordar que a proposição tem fundamento. Estas premissas são uma condição necessária para a minha crença. Se suspeitar que alguma destas é falsa deixo de confiar na proposição que o protão tem 1836 vezes a massa do electrão. Deixo de crer.
A crença do cristão é diferente. O cristão que crê que Maria era virgem não está a assumir que, algures, existem os exames ginecológicos necessários para substanciar esta proposição, que pode ter acesso a esses registos e que, se os analisar cuidadosamente, concluirá que Maria era mesmo virgem. Esta sua crença não é condicional. Não depende de assumir que há fundamento objectivo para a proposição. É uma crença categórica. O cristão crê. Ponto final.
Esta é uma razão importante para a incompatibilidade entre a ciência e as religiões. Como as crenças científicas são todas condicionadas à premissa de haver fundamento objectivo, acessível e compreensível, para as proposições em que se crê, os cientistas têm uma exigência quase paranóica de registos de resultados, descrições detalhadas dos procedimentos, conclusões cautelosas, crítica aberta, verificação independente e todo esse aparato que nos dá confiança que, quando chegam a acordo acerca de algo, há por trás um forte fundamento para o que defendem. As religiões fazem o contrário. A crença incondicional e dogmática vira as religiões para dentro, para as suas figuras de autoridade ou escritos sagrados onde o fundamento último de tudo é o mistério insondável da fé.
Esta diferença está na atitude. Na crença em si. Nem sequer depende da proposição em que se crê. Um podia acreditar que Maria era virgem por julgar haver registos médicos que o confirmassem e outro acreditar categoricamente, por fé, que o protão tem 1836 vezes a massa do electrão. Não há garantia que a crença condicional nunca falhe, porque temos sempre informação incompleta. Nem é certo que a crença incondicional só leve a aceitar proposições falsas. Até um relógio parado está certo duas vezes por dia. Mas há uma grande diferença entre estas atitudes, tanto na probabilidade de acertar mais perto da realidade como, e principalmente, na capacidade de corrigir erros e melhorar a qualidade das crenças que se tem.
* Mas, infelizmente, as franjas são enormes, quando consideramos o mundo todo…
** Com cada religião a defender, nem que seja em nota de rodapé, que as suas crenças são as mais verdadeiras.
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