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Mês: Outubro 2009

24 de Outubro, 2009 Carlos Esperança

Associação Ateísta Portuguesa – Comunicado

COMUNICADO

A Associação Ateísta Portuguesa (AAP), sem se pronunciar sobre assuntos literários ou estéticos, que não são da sua competência, tendo sobre o Antigo Testamento a mesma opinião de José Saramago, vem publicamente manifestar a sua posição sobre a polémica em curso, na sequência da publicação do livro «Caim».

Não é, todavia, a identidade de pontos de vista, quanto à Bíblia, que leva esta Associação a solidarizar-se com o Nobel da Literatura. A sua opinião é para nós, que defendemos a liberdade de expressão, tão legítima como a sua contrária.

O que leva a AAP a solidarizar-se com Saramago é a cruzada que os meios católicos mais intolerantes já puseram em marcha. Os judeus vieram igualmente com ataques agressivos e usando uma linguagem exaltada. O presidente da Comunidade Islâmica de Lisboa, Abdool Vakil, já afirmou que “os livros sagrados e a religião têm de ser respeitados”, o que se afigura uma ameaça face aos frequentes exemplos mundiais de atropelos do Islão à liberdade.

Numa sociedade livre e democrática é tão legítima a liberdade criativa de um grande escritor como as tolices bíblicas dos crentes. O que não é tolerável é o clima de intimidação e a linguagem agressiva que já sopra das igrejas, mesquitas e sinagogas.

A liberdade é uma bênção conquistada contra o desejo dos clérigos que sempre a combateram. É uma herança do Iluminismo que nenhum pretexto pode servir para pôr em causa.

Assim, a AAP manifesta a José Saramago a sua simpatia na luta contra o obscurantismo e aconselha os trauliteiros profissionais a ler o Antigo Testamento. Talvez passem a envergonhar-se das ideias que professam e, sobretudo, da violência com que as querem impor.

José Saramago é um escritor de talento reconhecido mundialmente e que, sendo ateu, frequentemente desperta críticas de figuras religiosas contra a sua prosa. A AAP compreende estas reacções e defende o direito à crítica, ao diálogo e à expressão das crenças de todos, sejam ateus ou religiosos, sejam escritores ou sacerdotes. A liberdade de expressão é fundamental para o convívio saudável das crenças e descrenças que compõem a nossa sociedade.

No entanto, a AAP lamenta as críticas dirigidas à pessoa de Saramago em vez de focarem o que ele escreveu e que, aparentemente, a maioria dos críticos nem sequer leu. Sugerem, inclusive, que Saramago mude de nacionalidade, que a «densidade de leitura» da Bíblia está fora da sua capacidade e que as suas declarações são «cretinas».

Estas críticas têm demonstrado que, para muitos religiosos, importa mais respeitar crenças que pessoas, justificando-se atacar quem lhes diga mal das crenças. É uma perigosa inversão de valores, pois são as pessoas que têm sentimentos, que têm direitos e que existem para os seus próprios fins. As crenças são apenas ideias abstractas que podemos aceitar ou rejeitar conforme quisermos.

Revelam também, estes ataques a Saramago, a incapacidade de refutar racionalmente as afirmações do escritor. Foi notória a falta de explicações por parte de quem se limitou a apontar defeitos a Saramago e a dizer que a Bíblia é muito complicada.

Ninguém explica por que motivo nos deve inspirar em vez de preocupar a demente decisão de Abraão, disposto a matar o seu filho em nome da religião. Ou o que o sofrimento de Jó demonstra, por uma aposta divina, além da terrível injustiça.

Por isso a AAP apela aos críticos de Saramago que se cinjam às declarações deste, que expliquem a sua posição e que participem no diálogo de uma forma racional. Que não confundam críticas a crenças com críticas a pessoas;  cada um é o que é mas todos, mesmo com alguma dificuldade, somos capazes de mudar de crenças.

Acima de tudo, a AAP apela para que se aproveite esta polémica para dar um bom exemplo de como debater ideias e conviver com quem pensa de forma diferente.

Associação Ateísta Portuguesa – Odivelas, 23 de Outubro de 2009

22 de Outubro, 2009 Carlos Esperança

Irão – O ataque aos Guardas da Revolução

Por que motivo não senti a mínima pena ou o mais leve desgosto pelo atentado contra a elite militar de Teerão? Como Guerra Junqueiro, perante o regicídio, “lamento de olhos enxutos a execução” e há, nesta citação contida, uma dissimulação porque senti no feito impiedoso, na demência suicida dos algozes, a execução de uma sentença.

Não vou ao ponto de sentir aquela euforia imbecil que percorreu a rua islâmica quando as Torres de Nova York foram derrubadas. Não sinto aquele regozijo fanático com que na Idade Média se assistia ao churrasco dos hereges ou, ainda agora, nas teocracias se delira com a lapidação de uma adúltera, mas aceito que os agentes do terror teocrático mereçam prematuramente as setenta virgens que os suicidas lhes destinaram, apesar da minha aversão à pena de morte.

Tenho, pelos Guardas iranianos, o mesmo afecto que dispensava à PIDE e o asco que ainda guardo de Rosa Casaco. Sei que uma pessoa de bem não deve confessar regozijo pelo atentado a Carrero Blanco, à saída da missa, bem rezado e comungado, ou pelo feito heróico da cadeira que puniu Salazar, mas os estados de alma não são fruto da razão nem os biltres que amordaçam o povo, intoxicados por um livro, merecem compaixão.

Não percebo, aliás, que uma certa esquerda europeia defenda um multiculturalismo em que a opressão da mulher possa ser enquadrada numa tradição cultural, ou transija com a poligamia, sem que a poliandria goze de igual direito. Há parâmetros que diferenciam a civilização da barbárie e não são as normas do Corão, da Bíblia ou da Tora que podem servir de padrão civilizacional.

A escalada agressiva das Igrejas, o proselitismo doentio e a desvairada obsessão de cada religião a impor o seu deus privativo, aos crentes de outro deus ou a quem o dispensa, é um retrocesso civilizacional perigoso.

Pobre Europa, se esquecer o sangue vertido nas guerras religiosas e renegar a laicidade para agradar ao Papa ou aquietar o ódio pregado nas mesquitas.

21 de Outubro, 2009 Carlos Esperança

Mário David – Bem-aventurado analfabeto

Eurodeputado exorta Saramago a renunciar à cidadania

Mário David não é um solípede à solta ou um inimputável analfabeto, é eurodeputado do PSD e vice-presidente do Partido Popular Europeu. Por isso as suas palavras podem ter eco, ser tomadas como boas e levadas a sério como se fossem de um homem culto e sensível.

Bem sei que Mário David, de que nunca tinha ouvido falar, é o Sousa Lara que entra na quota de todas as lideranças do PSD, o censor que honra o Santo Ofício, o analfabeto que, à semelhança do Sr. Duarte Pio, nunca leu Saramago e não gosta.

Mário David, sei-o agora, é o bem-aventurado primata que deseja a glória celeste na convicção de que há reino dos céus reservado aos pobres de espírito.

Pedir a Saramago, o Nobel do nosso contentamento, o mais admirável ficcionista do último século, não é de quem usa a cabeça mas de quem se serve dos pés. Todos.

Mário David afirma, referindo-se a Saramago: “Tenho vergonha de o ter como compatriota! Ou julga que, a coberto da liberdade de expressão, se lhe aceitam todas as imbecilidades e impropérios?”

Que quererá fazer este Sousa Lara, digo, Mário David? Quererá queimar o escritor? Retirar-lhe a nacionalidade? Ter a glória de Nero por incendiar Roma ou o nome nos jornais pela indigência intelectual?

Outra pérola deste analfabeto literário:  “Se a outorga do Prémio Nobel o deslumbrou, não lhe confere a autoridade para vilipendiar povos e confissões religiosas, valores que certamente desconhece mas que definem as pessoas de bom carácter”.

Foi o bom carácter de pessoas como Mário David que alimentou as fogueiras da Inquisição.

21 de Outubro, 2009 Carlos Esperança

Caim – 181 páginas de prazer

caim

Caim é um livro estimulante e divertido onde se confunde o génio literário de Saramago e a imaginação prodigiosa que nos faz viajar pelos mitos do Antigo Testamento e pelas maldades dos homens daquele tempo em que inventaram deus.

Desde a saída de Adão e Eva do Paraíso até à viagem na arca de Noé, a narrativa prende o leitor aos mitos bíblicos e deleita-o com a prosa admirável do mais notável ficcionista português.

Caim, depois de matar Abel por vontade de quem tudo pode, viaja no tempo e extasia-se com o vigor da sua juventude na cama de Lillith a quem faz o filho que a incompetência do marido não logra. Deixa-a prenha e consolada, e há-de voltar para encontrar o filho sem que este reconheça o pai biológico.

Saramago não perdoa a deus que brinque com a demência religiosa de Abraão, capaz de lhe sacrificar o seu único filho Isaac, e põe Caim a segurar o braço do infanticida antes de chegarem dois anjos que o impediriam mas que o trânsito fez chegar atrasados.

Caim é também o ponto de partida para o confronto dialéctico entre a civilização actual e a barbárie dos tempos bíblicos, entre o Estado de direito e o julgamento sumário onde  as mulheres e crianças pagaram pelo delírio homofóbico do supremo juiz que destruiu Sodoma e Gomorra com chuva de fogo e enxofre que não puniu apenas os homens.

O leitor é um garimpeiro que penetra nos livros e devora páginas para encontrar numa frase a pepita de ouro que persegue. Em Saramago é vasto e inesgotável o filão. Não é preciso procurar as pepitas, o ouro vem já com os quilates da lei.