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As questões sobre a laicidade continuam a inflamar opiniões, como indicam os mais de 200 comentários que os posts «De afirmações extraordinárias sobre a laicidade e liberdade religiosa na 1ª República» e «Lixos muito tóxicos» mereceram conjuntamente.

Em relação ao tema em apreço nos dois posts, as pretensões extraordinárias do padre João Seabra sobre ter sido a Igreja que obrou «a verdadeira separação do Estado e da Igreja em 1911 e não o governo republicano», seria certamente desejável que os defensores insistentes desta pretensão imbecil tivessem assistido à conferência do cardeal-patriarca Policarpo «Laicidade e laicismo: Igreja, Estado e Sociedade», debitada em 10 de Outubro de 2007 no Centro Cultural de Belém (e da qual tenho uma cópia que posso fornecer aos interessados).

Mas poderão certamente ler o artigo de Vitor Neto «A Laicidade do Estado em Portugal», in Revista de História da Sociedade e da Cultura, nº 5, Coimbra, Centro de História da Sociedade e da Cultura, 2006, cujo resumo poderão consultar aqui. Quer este artigo quer a alocução cardeal frisam algo que deveria ser óbvio para todos com um mínimo de honestidade intelectual, que a tese do padre Seabra é completamente idiota: «Após a implantação da República assistiu-se a um movimento de laicização semelhante, em certa medida, ao que ocorreu em França. Tal encontrou uma forte resistência do episcopado, da maioria do baixo clero e da Santa Sé

Ainda em relação ao discurso cardeal referido, é no entanto curioso atentar numa confusão que continua a intrigar-me dois anos depois e que aparentemente baralha os devotos que debitam nonsense atrás de nonsense sobre o que seja laicidade, para eles entendida na versão supostamente «inclusiva» que o patriarcado nacional preferiria, na realidade nada mais que catolicismo.

Diz o Larousse, cuja autoridade não contesto, que o adjectivo grego laikos do qual deriva laicidade significa «o povo», isto é, seria a palavra de eleição para se referir a todo o conjunto de cidadãos sem excepções nem distinção de ideologias ou convicções. Pelo contrário, a sua versão latinizada, laicus, da qual derivaria o termo leigos que identifica os religiosos (prosélitos) que não pronunciaram votos, discrimina o povo original em função da sua religiosidade. O cardeal patriarca, na lição de sapiência sobre laicidade que me estonteou tanto quanto as afirmações do padre Seabra, afirmou que o vocábulo grego, não sei se pela sua inclusividade, seria o oposto do latinizado. Mais concretamente afirmou:

«Laicidade. A etimologia mais provável é o vocábulo grego “laikós”, que significa profano, em oposição ao que é sagrado. Em contextos culturais e religiosos em que todas as coisas eram consideradas sagradas, a afirmação da laicidade podia parecer chocante e, mesmo, escandalosa.»

Embora não tenha dúvidas, e muitos dos comentários aos supracitados posts o confirmem, que a afirmação da laicidade é chocante e escandalosa para alguns, deixou-me intrigada esta confusão do cardeal-patriarca, certamente muito mais erudito que eu nestas histórias de línguas mortas. Confusão que foi perpetuada na parte em que o dignitário-mor da Igreja de Roma em terras lusas explicitou a «diferença» entre laicidade e laicismo:

«Os “ismos” indicam um uso abusivo de uma dimensão defensável. Porque a laicidade, sobretudo em relação ao Estado, se afirmou ao longo de um processo dialéctico, muitas vezes recusado pela Igreja, que via nela uma ameaça à fé como atitude inspiradora do sentido de todas as coisas, os defensores da laicidade atacaram a Igreja considerando-a travão ao progresso, rejeitaram a ordem própria da fé, procuraram bani-la da sociedade, constituindo uma mundividência laica, que fundamenta a moral, inspira as leis, regula o viver comum da sociedade, tornando-se uma sabedoria laica, substituta da religião que, quando não foi proibida e perseguida, foi relegada para o estrito âmbito do privado e pessoal, sem direito a expressão na cidade. Ora um recto conceito de laicidade ressitua a dignidade e a transcendência da fé cristã. A este alargamento abusivo do âmbito da laicidade costuma chamar-se laicismo».

Não percebo muito bem o que seja laicidade quando não em relação em Estado e penso ser exactamente a contrária do que afirma Policarpo a distinção entre laicismo e laicidade , isto é, é apenas aquela que distingue entre conceito, laicismo, e praxis, laicidade. Mas este parágrafo explica o porquê da pseudo-confusão cardeal, ainda muito influencido pelas doutrinas teocráticas da Igreja de Roma, expressas, por exemplo, na encíclica Unam Sanctam, do Papa Bonifácio VIII celebrado pelo Vaticano no selo que ilustra o post, onde se afirma ser necessário para a salvação estar sujeito ao Papa em tudo, mesmo em questões políticas. Ou pelo conjunto de textos (Corpus Areopagiticum) do Pseudo-Dionísio Areopagita, que influenciaram fortemente o cristianismo medieval e cuja influência perdura até hoje.

Ou seja, o cardeal que reminesce sobre «O Reino de Israel», que reconhece ter sido «uma teocracia, embora com a pureza do Deus da Aliança, e os que exerciam o poder, juízes, reis e sacerdotes, faziam as vezes de Deus, sendo por Ele escolhidos e ungidos», execra o laicismo que se traduz numa «mundividência laica, que fundamenta a moral, inspira as leis, regula o viver comum da sociedade». Isto é, para a igreja, pelo menos em Portugal, laicidade é só a tal variante por que ululava há menos tempo ainda Carlos Azevedo, bispo auxiliar de Lisboa e porta-voz do episcopado, na frase excelsa da laicidade clerical inclusiva: «depois do referendo sobre a IVG a sociedade portuguesa pensou que era laica».

Assim, em pleno século XXI, a Igreja nacional e os seus seguidores mais fanáticos, que se multiplicam em afirmações extraordinárias nas nossas caixas de comentários, continuam a confundir laicidade com catolicismo e a pretender que a verdadeira laicidade é aquela que impõe uma «mundividência católica, que fundamenta a moral, inspira as leis, regula o viver comum da sociedade». Isto é, confundem uma sociedade laica, no sentido grego da palavra, uma sociedade de todos e para todos, com a sua involução latina, uma sociedade católica imposta a todos!

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