De abortos «indirectos» e efeitos duplos
O porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, tentou suavizar o impacto das tonterias proferidas por Bento XVI em relação ao aborto, que, tal como as barbaridades em relação ao preservativo, tiveram as merecidas repercussões.
Como se pode confirmar no texto publicado oficialmente pelo Vaticano, na sua alocução no palácio presidencial Bento XVI condenou explicitamente o artigo 14 do protocolo de Maputo que prevê o aborto em caso de violação, incesto (que já sabemos serem merecedores de excomunhão latae sententiae ) e para salvar a vida da mulher. E foi especialmente a cratera de impacto da condenação deste último que Lombardi tentou minimizar…
Assim, Lombardi, com imensa subtileza, veio esclarecer que a Igreja não se opõe a abortos «indirectos» que ocorram durante os cuidados médicos necessários para salvar a vida da mulher. Não sei muito bem onde Lombardi se inspirou para afirmar que a Igreja sempre aceitou o aborto quando a morte do feto não é intencional porque esta interpretação não é pacífica nem universal. Por outro lado, as palavras cuidadosas que debitou, não consubstanciando o que são os tais abortos «indirectos», deram azo a interpretações erróneas veiculadas por alguns meios católicos de comunicação.
Isto é, um aborto «indirecto» não é sinónimo de aborto «terapêutico». Tanto quanto sei, não foram revogadas nem a disposição da Congregação para a Doutrina da Fé, que confirma que o aborto terapêutico não é admissível mesmo em casos «de vida ou de morte para a mãe», nem a encíclica Humanae Vitae, que afirma peremptoriamente «o aborto, mesmo por razões terapêuticas, deve ser absolutamente proibido».
De facto, a posição da Igreja Católica face ao aborto «directo», mesmo terapêutico, é um sólido e rotundo não em todas as circunstâncias mas existe um aceso debate sobre a «moralidade» dos abortos «indirectos».
O que é e em que assenta a moralidade de um «aborto indirecto»? Um artifício rebuscado e falacioso que consiste em pretender que certos procedimentos médicos que resultem indirectamente na morte do feto ou do embrião podem constituir uma escolha moral via o princípio do «efeito duplo».
Este afirma que uma acção directa promovida por uma razão moral pode ter um efeito inevitável, não intencional, indirecto e negativo. Mais concretamente, para a Igreja, uma acção envolvendo um efeito duplo só é moralmente aceitável se obedecer aos seguintes requisitos:
– Os efeitos negativos não são desejados e são efectuados todos os esforços razoáveis para os evitar;
– O efeito directo é positivo;
– O efeito negativo não é um meio de obter o efeito positivo;
– O efeito positivo é pelo menos tão importante quanto o efeito negativo.
Assim, no caso de uma gravidez em que se descobre que a gestante tem um cancro no útero, mortal se a gravidez for levada a termo – isto é, se causar a morte da mulher antes da viabilidade do feto -, a maioria dos teólogos afirma que é uma escolha «moral» o aborto «indirecto», isto é, remover o útero (mas não o feto/embrião e o tumor) para evitar a morte da gestante, não obstante a consequência colateral da morte do feto.
O problema de aplicação deste efeito duplo ou aborto «indirecto» em casos que para qualquer outra pessoa pareceriam óbvios, é evidente na gravidez ectópica, bastante frequente infelizmente, sendo a causa principal de morte de mulheres durante o primeiro trimestre de gravidez. Em cada 40-100 gravidezes ocorre uma gravidez ectópica, uma gravidez extra-uterina, frequentemente uma gravidez em que o embrião se fixa nas trompas de Falópio. Este embrião não tem qualquer hipótese de sobrevivência e a mulher corre risco certo de morte se não abortar espontaneamente antes de o embrião crescer o suficiente para provocar a ruptura da trompa.
Uma vez que a Igreja Católica não tem instruções oficiais sobre que tratamentos são lícitos ou ilícitos neste caso existem duas interpretações possíveis. A mais «progressista» exige que a gestante «respeite a vida do filho» e como tal os tratamentos «directos», que envolvem a administração de um mero comprimido ou uma pequena incisão no umbigo e subsequente remoção do feto da trompa, são proibidas. Para ser possível aplicar o «duplo efeito» numa gravidez ectópica, um médico católico «progressista» deve proceder à ablação da trompa onde está implantado o embrião, que envolve uma cirurgia demorada e complexa. Ou seja, é indispensável sujeitar a gestante a uma mutilação e cirurgia desnecessárias apenas para satisfazer as convolutas (i)moralidades católicas.
A maioria dos bioéticos, reconhece que este efeito dupo é uma falácia já que «A distinção entre efeito directo intencional e efeito indirecto é um artíficio. Não podemos evitar responsabilidade simplesmente dirigindo a nossa intenção para um efeito em vez do outro. Se prevemos ambos os efeitos devemos assumir responsabilidade por todos os efeitos prevísiveis das nossas acções».
De qualquer forma a moralidade do duplo efeito é a interpretação «progressista». A interpretação tradicional, em vigor, por exemplo, até muito recentemente no Chile*, baseada numa versão do princípio do século da Enciclopédia Católica, afirma categoricamente que é ilícita qualquer intervenção numa gravidez ectópica, embora reconheça que o embrião é «um agressor injusto»: por muito que «pareça desejável salvar a vida da mãe», o efeito negativo (matar o embrião) é o meio de obter o positivo (salvar a mãe).
* Em 18 de Janeirode 2007, a Câmara de Deputados chilenos declarou admíssivel um projecto de lei apresentado por deputados do PS-PPD-PRSD que pretendia suavizar as draconianas e católicas leis sobre o aborto no Chile, país em que este era ilegal em qualquer circunstância, mesmo para salvar a vida da mulher.
De facto, o aborto foi declarado ilegal no Chile em 1874, na sequência da declaração por Pio IX da imoralidade do aborto, que passou a ser desde 1869 um pecado merecedor de excomunhão automática.
Em 1931 foi criada uma excepção que permitia o aborto terapêutico, o Codigo Sanitario, que foi revogada em 1989 pelo católico exemplar Augusto Pinochet, um reconhecido defensor incondicional da vida.
A partir de 1989 e até Bachelet ter conseguido vencer a oposição da ICAR local, em caso de gravidez ectópica a lei exigia que o feto morresse – o destino certo de uma implantação fora do útero – ou a trompa rebentasse antes de esta poder ser removida (isto se a mulher não tivesse morrido entretanto).
(em stereo na jugular)