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Presunção e Água Benta – II


Há quase dois anos, Bento XVI referiu que o uso da razão sem mediação pela fé causa uma esquizofrenia terrível, ou mais concretamente:

«Deve admitir-se que a tendência para se considerar verdade apenas aquilo que pode ser experienciado constitui uma limitação à razão humana e produz uma esquizofrenia terrível, causa da existência do racionalismo, materialismo e hipertecnologia».

Na altura, tive uma certa dificuldade em perceber o que fosse a hipertecnologia denunciada como um mal por Bento XVI assim como tive muitas dúvidas sobre se o uso da razão nos descrentes origina uma acumulação excessiva de dopamina nas fendas sinápticas e como tal produz alucinações, delírios e percepções irreais sortidas. Mas percebi, dadas as prioridades anunciadas do seu papado, proeminentes entre elas a bioética, o apelo aos cientistas católicos para que «exprimissem o carácter razoável da sua fé».

Depois de ler a profusão de documentos, entrevistas e declarações debitadas pelo Vaticano sobre o tema, não considerei nada razoáveis, bem pelo contrário, as lucubrações da fé sobre ciência, em especial sobre biomédica/bioética. Para o cardeal Ratzinger, e podemos apenas supor que para Bento XVI, o homem não «tem direito pleno sobre a sua natureza biológica», acrescentando «O nosso estatuto ontológico como criaturas feitas à imagem de Deus impõe limites à nossa auto determinação (biológica). A soberania (sobre o nosso corpo) de que dispomos não é ilimitada».

Lucubrações irrazoáveis sobre ciência e cientistas não são apanágio do actual Papa, há dois anos o cardeal Alfonso Lopez Trujillo, responsável pelo Conselho Pontifical da Família, o mesmo que disse que o HIV é suficientemente pequeno para passar através de «poros» dos preservativos e que condenou veeementemente a clonagem terapêutica, afirmou que os cientistas que trabalham com células estaminais deveriam ser excomungados automaticamente. O cardeal Trujillo afirmou ainda que a excomunhão latae senentiae deveria ser estendida aos políticos que aprovassem leis permitindo a investigação em células estaminais, mesmo aquelas obtidas sem destruição de embriões – devidamente condenadas por Monsenhor Elio Sgreccia, que preside à Academia Pontifícia para a Vida.

Este último dignitário afirmou numa entrevista à Rádio Vaticano que o método para obter células estaminais desenvolvido por cientistas da Advanced Cell, em Alameda, Califórnia, «não resolve os problemas éticos» desta área de investigação. O novo método – descrito na Nature – consiste em colher um embrião numa fase muito primitiva de desenvolvimento e retirar-lhe uma única célula, que pode dar origem a uma estirpe de células estaminais embrionárias. O embrião, excedentário de fertilização in vitro, não é destruído no processo e mantém todo o seu potencial de desenvolvimento. Contudo, notou Sgreccia, o novo método não tem em conta que mesmo aquela única célula removida pode evoluir para um ser humano totalmente desenvolvido. Ou seja, segundo o Vaticano uma célula totipotente tem a mesma ou mais dignidade* que um ser humano.

As irrazoabilidades papais e as considerações avulsas de outros altos dignitários sobre bioética foram agora reunidas num único documento ainda menos razoável (documento completo em formato pdf). A instrução Dignitas personae, que a Congregação para a Doutrina da Fé divulgou sexta-feira e substitui a agora obsoleta Donum vitae , transcreve as considerações «científicas» de todos estes experts em biologia em geral e embriologia em particular num documento que consideram dever «ser colocado no centro da reflexão ética sobre a investigação biomédica».

Ou seja, esta é uma instrução doutrinária destinada essencialmente a controlar o trabalho dos cientistas, no tom que deu o mote ao papado de Bento XVI, «que não se trata de impor aos não-crentes uma perspectiva de fé, mas sim de interpretar e defender os valores radicados na natureza mesma do ser humano». Ou seja, não é «uma colecção de proibições», nem uma interferência na ciência mas sim «uma série de indicações para que a ciência se coloque verdadeiramente ao serviço da vida, e não da morte ou da arbitrária e perigosa manipulação das pessoas humanas».

Assim, a Dignitas personae avisa a comunidade em geral e a científica em particular que os recentes avanços em investigação em células estaminais, terapia genética e experiências com embriões violam princípios morais e levantam questões «éticas» sérias para os investigadores e outros professionais, mesmo aqueles não dados a práticas pecaminosas que, de acordo com o Vaticano, têm o dever de recusar material biológico obtido por outrem de forma não ética. Assim o Vaticano lança uma admoestação aos cientistas: «Não devem colaborar com o mal»!

Mas se é a investigação científica que está na berlinda, porque a «filosofia geral é que todo o ser humano tem direito a nascer da união dos pais», são condenadas igualmente quer a contracepção, um «pecado de aborto, sendo gravemente imoral» quer a reprodução medicamente assistida que envolva inseminação artificial – e, claro, o diagnóstico precoce e o congelamento dos embriões excedentários, «que são e permanecem titulares dos direitos essenciais e que, portanto, devem ser tutelados juridicamente como pessoas humanas».

A Dignitas personae detém-se no entanto na ciência, reprovando em particular a execrada investigação em células estaminais, considerada «cooperar com o mal» e «um escândalo» que não «está ao serviço da humanidade». Claro que a engenharia genética é um anátema em quaisquer circunstâncias «porque o homem nunca poderá substituir o Criador» e a terapia génica levanta dúvidas porque favorece «uma mentalidade eugénica». De igual forma, é condenado clonar genes humanos em animais por tal abominação constituir uma grave ofensa à dignidade humana – tenho uma dúvida transcendente sobre se bactérias e leveduras estão incluídas e se, por exemplo, os diabéticos que se injectam com insulina estarão a cometer um pecado grave.

Achei especialmente divertido o capítulo devotado ao «uso de “material biológico” humano de origem ilícita» pela tortuosidade a que se obrigaram os seus redactores. Embora a produção desse material ilícito seja «sempre uma desordem moral grave», os laboratórios que o utilizem na produção de vacinas -quando este «foi produzido fora do seu centro de investigação ou que se encontra no comércio» -, devem apenas evitar «o perigo de escândalo», isto é, que se saiba que estão a trabalhar com os tais materiais.

Tudo isto porque no caso de vacinas preparadas a partir de fetos abortados, o Vaticano produziu há anos um documento que permite a vacinação «imoral» de crianças católicas embora exorte os católicos a lutarem contra as companhias que produzem imoralmente tais vacinas, especialmente a vacina contra a rubéola para que não há alternativas «morais».

O sofisma na base da decisão consiste em considerações de extrema ratio, isto é, a obrigação moral de evitar colaboração material passiva com um «crime»(ser vacinado com uma vacina ilícita) não é obrigatória se existir um inconveniente grave, nomeadamente quando existe «coerção moral da consciência dos pais que são forçados a agir contra a sua consciência ou então pôr em risco a saúde dos seus filhos e de toda a população. Esta é uma escolha alternativa injusta, que deve ser eliminada tão cedo quanto possível».

Mas se os desenvolvimentos científicos tornaram impossíveis de aceitar pelos crentes posições como a do Papa Leão XII que, durante uma epidemia de varíola em 1829, decretou que «aquele que permitir ser vacinado deixa de ser um filho de Deus», em relação aos cientistas não há esses pruridos.

Assim, de acordo com o Vaticano, os cientistas têm «o dever de recusar o referido “material biológico” – mesmo na ausência de uma certa relação próxima dos investigadores com as acções dos técnicos da procriação artificial ou com a dos que praticaram o aborto, e na ausência de um prévio acordo com os centros de procriação artificial – resulta do dever de, no exercício da própria actividade de investigação, se distanciar de um quadro legislativo gravemente injusto e de afirmar com clareza o valor da vida humana

Repetindo o que já disse n’«As Bananas da Discórdia», estas proibições absurdas, o obscurantismo e imiscuição indevida na ciência são o que tornam o discurso dos teólogos cada vez mais irrelevante. Infelizmente, há umas quantas pessoas que levam a sério estes dislates e os tentam transpor para a letra da lei dos respectivos países, como aconteceu em Itália durante o referendo de 2005 sobre fertilização medicamente assistida.

Esperemos que a este documento infeliz não se sigam manifestações anti-ciência dos mais fanáticos. Mas certamente que a Dignitas personae dará munições à Igreja americana nas guerras culturais, nomeadamente no que respeita à anunciada intenção de Barack Obama de reverter o veto de George W. Bush na limitação das pesquisas com células embrionárias. Além disso, não é necessário grande presciência para prever que o documento será recorrente na argumentação dos bispos franceses durante os debates parlamentares sobre a Bioética, previstos para 2009.

*Na encíclica Evangelium Vitae pode ler-se, no meio de uma imensidão de platitudes e da condenação reiterada do aborto, eutanásia e contracepção, que «a vida na sua condição terrena não é um valor absoluto». O ponto 57 da encíclica resume a posição da ICAR sobre a inviolabilidade da vida humana: apenas condena «a eliminação directa de um ser humano inocente». Ou seja, não há problemas com a eliminação directa de «culpados» (quiçá os homossexuais que se pretende proteger com a directiva da ONU a que o Vaticano se opõe veementemente) e com mortes indirectas ou «colaterais» (quiçá das «guerras justas» sancionadas no catecismo de 1997).

Em stereo na Jugular e no De Rerum Natura

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