Certezetas
A certeza absoluta não está ao nosso alcance porque estamos sempre sujeitos a errar. Mas vale a pena tentar chegar lá perto fundamentando as nossas crenças de forma a escolher as que merecem mais confiança. A ciência é o método mais sistemático e fiável que encontrámos para o fazer.
Mas à religião isto não satisfaz. Primeiro, porque exige uma atenção constante ao erro e que tudo seja posto em causa, testado e rejeitado quando falha os testes. Depois porque recomenda que a confiança numa crença seja proporcional às evidências que a fundamentam. E, pior de tudo, não garante certezas. É a dúvida que nos conduz ao que merece ser acreditado, mas pela dúvida ninguém pode afirmar saber que Deus é três pessoas numa só substância e que uma é Pai, outra Filho e outra Espirito Santo, o que quer que isso seja, pois não há nada de concreto que fundamente esta hipótese. Para este tipo de coisas as religiões precisam da fé.
A fé, defendem os religiosos, justifica aquilo que não se pode justificar de outra forma. Que uma hóstia se transubstancia. Que um livro foi inspirado por um deus. Que só os homens podem ser sacerdotes. Crenças para as quais não só falta evidências como nem sequer se percebe que tipo de evidência as poderia justificar. E cada fé leva a uma certeza diferente. Os que são pela Bíblia dizem ter tanta certeza como os que torcem pelo Corão. Milhares de milhões de pessoas julgam ter a certeza que só o seu deus existe e que os dos outros são treta. Com tanta certeza entendem-se menos que quem tem dúvidas.
Há crentes que dizem não ter certezas. Dizem ter dúvidas como os outros e apoiar os seus dogmas na razão. Não pode ser verdade. A dúvida e a razão não permitem confiar em crenças sem evidências. Ninguém que se sirva da dúvida e da razão poderá crer que Jesus é Deus, que Maomé falava com Deus ou que Siddhartha se transformou em Deus. Essas hipóteses exigem evidências muito mais fortes que os meros relatos de quem as julgava ser verdade.
Compreende-se este mistério da fé, o mistério de haver tantas certezas contraditórias sem nada que as suporte, percebendo que a fé não dá certeza. Dá só o gosto. Ajuda a acreditar na certeza do que não se sabe. Disfarça a dúvida e a falta de fundamento das hipóteses que se defende. E serve para qualquer crença. Adoça sem calorias qualquer deus, dogma, livro ou preconceito, por muito amargo que seja.
Só não serve para distinguir o que é verdade.
Em simultâneo no Que Treta!.