Momento de poesia
SÓ QUERO ENTENDER
Se me disseres porque morre uma criança queimada na barraca.
Se me disseres porque uma mãe com o filho às costas
perde uma perna numa mina,
e a criança magrinha ali fica a chorar
até secar as lágrimas,
e se deixa adormecer abocanhando a mama
que já nada tem para lhe dar.
Se me disseres porque é que uma mulher,
ali à frente das câmaras e perante o nosso olhar,
já sem nada para dar, arranhar,
esgravetar nem roubar
morre assim, muito antes de morrer.
Se me disseres porque matam e morrem os homens
em nome do Criador de todas as coisas.
Se me disseres porque dá Deus os gozos da vida aos
ricos e poderosos,
e aos pobres só migalhas de afectos,
água, ar e restos de alimentação contaminada.
Se me disseres porque é que a violência faz parte
da vida dos homens
e dela têm de sair sempre vencidos e vencedores.
Se me disseres porque é que nestes tempos pós-modernos e globais,
como o fora na peste negra,
e já antes desta entre assírios, gregos, romanos
e outros que tais,
só os ricos têm acesso à riqueza
e às coisas puras, saudáveis e naturais.
Se me disseres porque é que, mesmo assim,
na morte somo todos iguais,
ou talvez não,
mas sem que daí venha qualquer consolação.
Se me provares que a justiça veio ao mundo
e por cá ficou.
Se me provares que a fome atinge só quem não faz pela vida,
e que a miséria, seja ela qual for,
é o fruto natural de ervas daninhas
que, se calhar, até deveriam ser mondadas
à nascença.
Se me explicares porque é que todos os projectos políticos
assentam na bondade do povo
e apontam a felicidade dos homens.
Se me explicares como podem os homens entender-se,
aceitar-se e amar-se
se a sua vida é só representação.
Se me explicares como é que nestas condições
valerá de alguma coisa dizer-se
que perante a lei os homens são todos iguais.
Se me provares que as terríveis imagens de seres amortalhados
em pele e ossos e com olhos desmedidamente arrega-lados,
que nos metem em casa às horas mais inconvenientes
mais não pretendem do que alertar-nos
para as flagrantes desigualdades do mundo.
Se me disseres porque é que tão arrepiantes despojos
são ferozmente disputados entre hienas e abutres
nas cadeias de televisão,
que as retocam e recompõem com música de fundo,
se necessário for,
para voltar a servir e a repetir até à saturação.
Se me provares que este jogo não tem qualquer maldade
e não almeja a vulgarização destas
dramáticas situações,
nem induzir ideias de uma inferioridade natural
ou de ainda mais preversas e recorrentes inter- – pretações
da teoria da evolução,
que assim continuará a fazer a selecção.
Se me provares que a ajuda humanitária,
agora estruturada em múltiplas organizações
não é um instrumento da Globalização,
pronta a levar aos indigentes do mundo,
em bons empregos e exóticas excursões,
o vomitado dos ricos, para os quais,
sem pobres, não haveria sossego de consciência
nem para a alma salvação..
Se me provares que a melhor maneira de ajudar
ainda é dar,
e não como o Grande Timoneiro
não se cansava de ensinar.
Se me provares que a caridade é melhor que a solidariedade,
sabendo nós que esta não amesquinha nem degrada,
porque assenta nos princípios da igualdade,
não faz curvar o corpo e baixar a cabeça,
com que se hipoteca a dignidade.
Se me provares que Deus, a Natureza
ou seja lá o que for que trata destas coisas,
a uns deu inteligência, força de vontade e determinação
e a outros não.
Se me disseres que o tráfico de drogas e mulheres
é um sucedâneo natural da livre iniciativa,
da vida em liberdade e da sociedade da abundância.
Se me disseres que Aquele que controla o mais pequenino dos
meus cabelos
nada pode sobre a vontade dos homens
e eu te disser que um Deus assim não me serve
para nada,
e tu ficares calado.
Digas-me tu o que disseres,
e por muito que nos possa custar,
eu te direi que pior que derrubar o
World Trade Center
com tudo e todos os que ali se cruzaram com o azar,
ainda é violar uma criança.
Se me disseres, provares e explicares
isto e o mais que falta para tudo,
Então, ainda menos ficarei a entender do mundo.
a) Diamantino Silva Out2001
Perfil de Autor
- Ex-Presidente da Direcção da Associação Ateísta Portuguesa
- Sócio fundador da Associação República e laicidade;
- Sócio da Associação 25 de Abril
- Vice-Presidente da Direcção da Delegação Centro da A25A;
- Sócio dos Bombeiros Voluntários de Almeida
- Blogger:
- Diário Ateísta http://www.ateismo.net/
- Ponte Europa http://ponteeuropa.blogspot.com/
- Sorumbático http://sorumbatico.blogspot.com/
- Avenida da Liberdade http://avenidadaliberdade.org/home#
- Colaborador do Jornal do Fundão;
- Colunista do mensário de Almeida «Praça Alta»
- Colunista do semanário «O Despertar» - Coimbra:
- Autor do livro «Pedras Soltas» e de diversos textos em jornais, revistas, brochuras e catálogos;
- Sócio N.º 1177 da Associação Portuguesa de Escritores
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