Loading

Fátima na Rússia – Portugal vai evangelizar a Rússia?

90 anos se passaram desde que o Sol dançou o malhão, trance psicadélico, forró e merengue, desceu do poiso e aterrou em azinheiras, sucedia então o milagre de não termos sido incinerados, vida na Terra sempre em risco de extinção, sejam peixes e patos afogados no grande, gigantesco, imensurável, apoteótico dilúvio do ser superior que não forneceu guarda-chuvas a ninguém, seja incineração por o Sol não saber estar sossegado no seu canto, fenómenos interessantíssimos do ponto de vista da histeria e lunatismo de massas. Acrescenta-se uma virgem que teve relações sexuais com um pombo do qual teve um filho, virgindade imaculada mantida pois claro, mete-se num foguetão e vai para outras paragens, volta e meia lá vem ela mandar umas bocas aos pastores, vulgar aparição, azinheiras deixaram de estar na moda pelas Américas, vai aparecendo em paredes, torradas, bocados de chocolate e fôrmas de pizza.

Toda a história se relaciona, obviamente, com a Revolução Bolchevique.

A RTP, televisão dos cidadãos católicos portugueses, explicou-nos a relação, embora óbvia, requintes de maior aprofundamento da questão com historiadores católicos importantes, representantes vaticanistas importantes, alicerçados com relatos populares sublimes e clarividentes.

Horário nobre, e rola o “documentário” com uma mulher vestida de branco num dos cantos da televisão e que nunca de lá saiu, nem se conseguia ver bem os enforcamentos e os tiros na cabeça com ela sempre à frente a estorvar, não era defeito da televisão, era mesmo do “documentário”.

Começo sublime, sumptuoso mesmo, com um ex-ateu quase a lacrimejar com as memórias horrendas da sua juventude, os pais levavam-no a esquiar ao Domingo de manhã, iam para piqueniques, e nunca o levaram a uma missa Católica… Quanto infeliz foi essa juventude, regozijava-se com a ligação de 1917, coincidência muitos incautos diriam, mas estrelas vocacionadas ao bailarico e virgens que vão para a pastorícia correlacionam-se estreitamente com os regimes despóticos russos do século XX.

Entre os relatos de incontornável importância para as sociedades Humanas estava um de uma idosa, afirmava veementemente que tinha visto o Sol pousar em cima das árvores, linkagem perfeita feita por sotainas historiadoras e toca a meter mais imagens de enforcamentos, tiros na cabeça, na barriga, destruição e pilhagem de igrejas, e é ver as crianças extasiadas em ternura, nunca antes haviam tido oportunidade de ver as múltiplas formas de assassinato a sangue frio, glamorosa liberdade de informação invade a RTP após anos de censura a imagens chocantes, lapidações de mulheres e mutilações genitais nem às 5 da manhã à semana, emancipação em pleno horário nobre, nada melhor para abrir os olhinhos às crianças! Tão enganadinhas com desenhos animados andavam…

Dos testemunhos reais dos sobreviventes à brutalidade fascista ressaltavam os de vários anarquistas ateus russos (ou isto é de outro documentário?.. é mesmo…), ressaltavam os de vários cristãos que haviam sobrevivido à barbárie, ortodoxos aparecem pelo contexto como protegidos pelo Vaticano, embora inferiores claro, amores corriam que nem flatulências em dias de feijoada entre ortodoxos e as sotainas vaticanistas.

O papa de Hitler aparece em grandes saudações fascistas, condenando o fascismo vermelho e apoiando o fascismo nazi (não tenho a certeza, entraram anúncios antes da alusão ao nazismo, e continuaram, acho que o nazismo nunca existiu, é rasgar novamente os livros e praticar o desporto de tiro aos cd´s de documentários sobre as guerras mundiais).

No fim, a sensação enorme de ir até à Rússia, aqueles malvados e estranhos ateus despóticos e fascistas que tinham fé cega no comunismo e que idolatravam fotografias de um homem feio como um bode que fazia concursos com o Hitler (isto segundo a História que li recentemente, errada, tenho de ir às bibliotecas da Opus Dei pedir livros em condições), um dos quais o do bigode, qual deles conseguia ter o bigode mais fofinho, que matavam cristãos e destruíam igrejas e enforcavam e abatiam a tiro, e enforcavam (várias vezes mesmo, os espectadores podiam ter ido à casa de banho e não ter visto, ou na altura ter pestanejado, ou as crianças podiam ter passado pelas brasas temporariamente) e tiro na nádega e enforcamento e tiro na cabeça mas desta vez com a bala a entrar pela orelha.

Pelo meio andava o ícone de Kazan, beijos ao vidro em catadupa, ao fim do dia pouco se conseguia ver com tanta saliva lá colada. Tudo junto e temos o “documentário” mais esplendoroso da RTP, uma abordagem nunca antes feita à concretude das coisas nos regimes despóticos da ex-URSS, bailes do Sol numas azinheiras em Portugal associados ao fascismo comunista da URSS com ícones do Estalinismo e do Cristianismo.

Uma amálgama de crendices baseadas nas crendices de que uma crendice é mais verdadeira que outra crendice, e que a crendice de numa História alterada e mesclada com mais crendice é sinónimo de uma boa crendice. Se não compreenderam eu também não, mas é a fé que move a crendice, cristandade em orgasmo colectivo e parece que Portugal vai evangelizar a Rússia, pressupostos a ter em conta, Portugal é uma prostituta do Vaticano, e a Rússia é uma cambada de ateus maléficos cujo hobby é enforcar pessoas e tentar enfiar balázios no interstício anal dos cristãos, tudo o resto é paisagem.

Um documentário a ser visto, revisto e visto outra vez, a BBC e a National Geographic até se espumam de inveja pela qualidade dos documentários da Radiotelevisão dos cidadãos portugueses católicos.

Para finalizar, esperava ver finalmente a alusão ao ateísmo, mas o “documentário” acabou, deve ter sido por falta de tempo de antena. Entre os jogos entre fascismos ficou esquecida a Liberdade, pelo menos parece que a última grande e massiva manifestação pela Liberdade antes do fascismo soviético dos crentes comunistas fica nas páginas da História, sob autorização posterior do Vaticano e da Radiotelevisão dos portugueses católicos claro está!

O Ateísmo infelizmente sucumbiu e fracassou perante o Partido Comunista Russo em 1921, quando faleceu Piotr Kropotkine, o revolucionário que rejeitou o cargo de Ministro da Educação do governo provisório, que enfrentou Lenine e que lutou com todas as suas forças contra as forças revolucionárias que fizeram o que não deviam ter feito, que erradicaram todo o autoritarismo em prol de um novo autoritarismo, que substituiram a fé por uma nova fé, morte marcada pela última grande reunião massiva de anarquistas e a derradeira grande manifestação livre naquela que viria a ser então a União Soviética.

Os meus pêsames à RTP, a Aura Miguel, Eduardo Ricou, Camilo Azevedo e Alfred Schnittke pelo esterco televisivo que produziram, pelo sectarismo vesgo que tentaram induzir na população portuguesa, pela demagogia cega, pelo ódio à Liberdade e à sociedade inclusiva, racional e informada.

Ámen.

Dedico este artigo à memória do constantemente esquecido Kropotkine.

«Todo o Homem de coração pede à partida que o matem caso venha a converter-se alguma vez numa víbora, que lhe cravem o punhal no coração se em algum momento ele vier a tomar o lugar de um tirano destronado.»

«As concepções ingénuas vão desaparecendo. Mas, se é verdade que as velhas palavras desaparecem, a essência mantém-se sempre na mesma.»

Piotr Kropotkine: A Moral Anarquista – Edições Sílabo

Também publicado em LiVerdades

Perfil de Autor

Website | + posts