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Pelos caminhos-de-ferro e da vida (Crónica)

O trama era o comboio diário que, vindo de Vilar Formoso, chegava à Guarda um pouco depois das nove horas da manhã e regressava às cinco da tarde em sentido inverso. O nome ficara do inglês Tramway e era exclusivo do referido comboio, bem mais ronceiro e acessível que o correio, o rápido ou o sud.

No último dia de Setembro e nos primeiros de Outubro a 3.ª classe regurgitava de gente e de mercadorias que se acondicionavam nos corredores, debaixo dos bancos, nos cacifos junto ao tecto, nas plataformas de acesso às carruagens e entre os passageiros. Adolescentes de ambos os sexos e várias mulheres entre os trinta e os quarenta anos, envelhecidas por numerosos partos, lides do campo e privações, vigiavam as bagagens que ocupavam todos os espaços vagos, servindo os sacos de batatas, entre os bancos, de estribo aos passageiros.

Na estação da Guarda apeavam-se, reuniam os pertences e transportavam-nos até à paragem das camionetas. Detectados os passageiros sem bagagem, aqueles que tinham muita pediam-lhes para dizerem que era sua a deles, a fim de poderem transportar na camioneta tão vasta carga sem pagamento extra. Recebiam a ajuda pedida e a piedosa mentira tinha a compreensão e cumplicidade do cobrador de bilhetes, que fingia ignorar tão simplória tramóia, não fosse ele também um homem do povo igualmente sacrificado por trabalhos e privações.

Os jovens partiam lestos, a pé, calcorreando a distância que separava a Estação da Sociedade de Transportes, a fim de carregarem as bagagens até casa, quando chegassem. Se a camioneta se adiantasse, lá estariam à espera os volumes e quem os guardava e, às vezes, antecipavam-se eles à camioneta que ia pelo Rio Diz, autocarro vetusto e lento que se queixava do peso e da subida e resfolegava nas paragens. Poupavam os peões o bilhete, que custava 2$50 a cada passageiro.

Entre 1 e 7 de Outubro não havia aulas. O primeiro dia servia para apresentar aos alunos Sua Excelência Reverendíssima o Senhor Bispo, o Governador Civil, o Presidente da Câmara, o Reitor, o Comissário da Mocidade Portuguesa, excelentíssimos e doutores todos eles. O cerimonial servia para mostrar aos rústicos alunos o poder e a autoridade, o respeitinho era muito bonito, e ensinar a aplaudir quando qualquer deles tartamudeasse umas trivialidades.

Depois era uma semana de azáfama para celebrar os contratos da luz e da água e colocar os contadores, com os putos e as meninas já instalados e separados em quartos transformados em camaratas. A água era fria e o simples acto de lavar as mãos um sacrifício que se fazia com parcimónia, sendo o banho semanal um hábito de gente fina.

Entretanto os alunos deslocavam-se ao liceu a tomar nota da turma, dos horários, das disciplinas e dos livros que era preciso comprar. E aprendiam que no rés-do-chão ficavam as meninas e no primeiro andar os rapazes.

Depois de se inteirarem dos livros que podiam usar dos irmãos mais velhos e dos que podiam comprar em segunda mão, por metade do preço, no Pinto, junto ao cinema, lá iam às livrarias do Sr. Felisberto ou do Sr. Casimiro comprar os restantes e pedir os horários, impressos onde se anotavam os dias e as horas das aulas de cada disciplina, oferecidos pelos livreiros numa gesto de simpatia e boas-vindas.

A maior parte hospedava-se em casas particulares, autênticas colmeias, onde a mesada era paga em géneros: pão, batata, azeite, toucinho, feijão e outras vitualhas, que variavam consoante a origem dos hóspedes e a colheita agrícola da família, com a propina de 100$00 mensais – a única contribuição fixa e sem discussão.

Alguns ficavam em casas de funcionários públicos que arredondavam os magros salários com hóspedes, mas outros tinham o arrimo de uma mulher que aos seus juntava os filhos alheios e a todos cuidava. Eram camponesas cujo instinto fez governantas para darem aos que velavam o futuro que não tiveram.

Foi assim que muitos alunos se iniciaram no ensino secundário. A abnegação das mulheres rurais, tantas vezes analfabetas, duramente arrancadas à casa, ao marido e ao habitat, contribuiu para a escolarização do país e para dar aos filhos um rumo que os afastou da pobreza, e para criar quadros que, a partir de 1960, começaram a mudar a face de Portugal enquanto o imobilismo da ditadura mantinha o paradigma de nação rural, temente a Deus, pobrezinha mas honrada.

Algumas dessas mulheres, heroínas anónimas, moiras de trabalho e de abnegação, ainda rumaram a Coimbra para apoiarem os filhos próprios e alheios que ousaram a Universidade e viraram doutores com calos nas mãos no início de cada ano lectivo.

Da odisseia colectiva, do sacrifício silencioso, do desassombro destas mulheres da Beira nunca se fez o inventário das lágrimas, privações e afoiteza que ajudaram a mudar Portugal. Depois de cumprida a missão regressaram às terras e à lavoura, ao mau feitio dos maridos e às lides da casa, às novenas e promessas pias para que os filhos que criaram não perecessem na guerra que consumia jovens e destroçava os pais num conflito obstinado que a ditadura manteve contra a história, o bom-senso e o direito dos povos à autodeterminação.

Já poucas restam dessas mulheres ignoradas. Ficaram por contar histórias de vida, retalhos da memória de um povo que parece envergonhar-se do que mais o nobilita e esquecer as raízes que são pergaminhos da honra no caminho da vida.

Há talvez nesta amnésia colectiva a ingratidão dos filhos e a vergonha de novos-ricos que esqueceram a abnegação das mães e a solidão dos pais que ficavam a mourejar nos campos e se privaram das companheiras numa dádiva cujo sacrifício é fácil imaginar.

Jornal do Fundão, hoje.

Perfil de Autor

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- Ex-Presidente da Direcção da Associação Ateísta Portuguesa

- Sócio fundador da Associação República e laicidade;

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- Colunista do mensário de Almeida «Praça Alta»

- Colunista do semanário «O Despertar» - Coimbra:

- Autor do livro «Pedras Soltas» e de diversos textos em jornais, revistas, brochuras e catálogos;

- Sócio N.º 1177 da Associação Portuguesa de Escritores

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