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Pensamento Veleitário III – A mente e o cérebro

«O mistério do sentir está a tornar-se menos misterioso»
António Damásio

No artigo anterior escrevi que existem hoje bons indícios de que a vida acaba com a morte.
Acrescento agora: hoje temos bons indícios que a vida acaba com a morte cerebral.

Porque hoje sabemos que a mente tem origem no cérebro.

Hoje sabemos que um paciente a quem é cortado o corpo caloso desenvolve duas consciências independentes. Até há casos em que uma delas acredita em Deus e outra não.

Hoje sabemos que as memórias, recordações, capacidades intelectuais, surgem da ligação entre neurónios. Sabemos que lesões destroem recordações e também podem afectar a personalidade, os valores, as capacidades intelectuais do indivíduo que as sofre.

Hoje começamos a conhecer os mecanismos que sustentam a mente: actividade eléctrica, química, biológica. Hoje começamos a compreender porque é que algumas subtâncias têm o efeito que têm no nosso comportamento.

Se a nossa consciência surge de uma determinada actividade cerebral, temos aí um forte indício de que ela não poderá ocorrer após o cérebro estar incapaz de manter essa actividade.

A ideia de uma alma imortal é popular, mas pouco clara. O que é a «alma» ao certo? O que é que ela tem que possa ser chamado «nosso»?

Será que a alma tem a personalidade do dono? Ela aprende? Evolui? Pode ser virtuosa? E pérfida?

A ideia de uma alma que não mantém as memórias do indivíduo não é muito apelativa para muita gente. Lá se vai o pensamento veleitário para muitos que querem encontrar os queridos e familiares no Paraíso – e uma alma sem memória não tem muito de «nossa», visto que tanto daquilo que somos está relacionado com a memória e as recordações.

Mas uma alma que mantém as nossas memórias levanta outras questões. Se eu aprendi francês e me esqueci, a minha alma também se esqueceu? Se não, a sua personalidade será diferente da minha, visto que a minha personalidade está intimamente relacionada com o acesso que tenho às diferentes memórias – se me lembro mais facilmente da sensação de um trauma de infância ou de um conselho de um amigo pode determinar se sou mais inflexivelmente justo ou mais compreensivo numa determinada situação, só para dar um exemplo.

Mas se a alma se esquece daquilo que eu me esqueço, então a alma de alguém com Alzheimer também terá sido afectada pela doença. A verdade é que não existe nenhuma fronteira definida entre as memórias perdidas naturalmente e aquelas que são perdidas devido a tais doenças, é todo um contínuo de intensidade com que se dá um mesmo processo fisiológico.

E mesmo sem falar na memória, a verdade é que todos os cérebros podem ser situados algures algures num continuum de patologia. Ou existem almas com Alzheimer, ou então as nossas almas terão personalidades muito diferentes das nossas. Faz sentido culpá-las pelo que nós fizemos, se a nossa personalidade tem propensão para fazer coisas diferentes daquilo que a nossa alma faria?

Os indícios da ciência hoje são claros. A vida acaba com a morte.

A nossa tendência para o erro intelectual do pensamento veleitário ainda não permitiu a muitos reconhecer isto com clareza. Mas temos tempo. A religião sustenta-se em vários erros cognitivos (o efeito manada, a ilusão de controlo, etc…) mas a ciência já foi destruindo vários, e este vai ser só mais um.

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