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Fé a sério?

A Sofia e o Joel são católicos e baptizaram ontem o pequeno Pedro, que tem 18 meses.

Neste momento, o Joel está no trabalho, e a Sofia está em casa, sentada num canto da sala a falar ao telefone. O Pedro brinca com os seus brinquedos no outro canto da sala. A certa altura pousa os brinquedos e tem vontade de pôr a língua na ficha eléctrica.

O primeiro instinto de Sofia, ao ver o que está prestes a acontecer, é dar um berro e correr para salvar o seu filho.

Mas se ela o ama, ela vai querer o melhor para ele. A verdade é que Sofia acredita mesmo que esta vida não é nada a comparar com a plenitude da vida eterna. Que se Pedro morrer agora, é certo que ele encontrará a felicidade no Paraíso e será feliz para todo o sempre.
Acredita que pelo contrário, se ela o salvar, Pedro crescerá e terá muitas oportunidades de ceder à tentação, conhecer o pecado mas não o arrependimento, rejeitar Jesus, ou não ser forte na Fé. Se ela o salvar, existem boas hipóteses de que Pedro acabe por conhecer o sofrimento eterno do Inferno.

Se Sofia quer o melhor para Pedro, ela aproveitará a oportunidade dada por Deus: se não fizer nada, é certo que Pedro conhecerá a vida eterna ao lado de Jesus. Se salvar Pedro, arrisca que este acabe por encontrar o eterno sofrimento do Inferno.
Sofia opta por deixá-lo morrer.

Claro que todos os católicos hoje achariam horrível a atitude de Sofia. Achariam, tal como eu, abominável, quase indesculpável. Mas ao contrário de mim, não teriam qualquer boa razão para sustentar tal posição. Sofia fez aquilo que, aos olhos de qualquer crente cristão coerente, deveria ser, de longe, o melhor para Pedro.
Só faz sentido achar horrível a atitude de Sofia caso não se esteja lá muito certo dessa conversa da vida eterna, Inferno e quejandos…

A verdade é que a esmagadora maioria dos crentes comporta-se como se não acreditasse a sério naquilo que diz acreditar.
Se uma pessoa acreditasse realmente que é nesta vida que se decide se a eternidade vai ser passada no Paraíso ou no Inferno, estaria em pânico a ler a Bíblia, o Corão, os textos importantes de todas as religiões, para decidir qual é que é certa, visto que dessa decisão depende o futuro – a eternidade! – da sua alma.

Se uma pessoa acreditasse realmente que é nesta vida que se decide se Deus permite a sua entrada no paraíso, iria ler a palavra de Deus (a Bíblia, se fosse cristã) como se disso dependessse a sua vida. Como se disso dependesse mais que a sua vida. Iria descobrir que Jesus pede que abandone tudo para O seguir. Tudo. As riquezas, a família, os amigos – Jesus diz que quem não estiver disposto a abandonar tudo não conhecerá a vida eterna. E qualquer pessoa que acreditasse realmente nisto, abandonaria tudo de imediato – quem arriscaria uma eternidade no Inferno pelo conforto de faltar uma vez que fosse à missa? Quem deixaria de passar fins de semana na prisão a confortar os prisioneiros, ou nos lares a acompanhar os enfermos, como pede Jesus? Quem toleraria os homossexuais, desobedecendo a Deus? Quem gastaria em luxos desnecessários em vez de dar aos pobres? Quem teria relações sexuais antes do casamento? Que mulher deixaria de ser submissa e obediente ao seu marido? Quem trabalharia nos dias consagrados a Deus (como os Domingos)? Quem toleraria quem trabalhasse? Quem toleraria outras religiões e ídolos?

Ninguém teria uma vida normal. Pelo contrário, todos viveriam como os mais fundamentalistas. Esses são os únicos que agem como se acreditassem a sério nessas patranhas do Céu e do Inferno. Esses são os únicos que poderiam compreender Sofia.

O mal de se andar a contar essas patranhas é que, ao contrário daquilo que felizmente acontece em quase toda a sociedade ocidental desenvolvida, as pessoas poderão chegar mesmo a acreditar.
E como podemos observar por muito do mundo islâmico, ou pelos mais fundamentalistas que andam por cá, isso não é nada desejável…

Mas se hoje poucos agem como se acreditassem nesses disparates – e ainda bem! – a verdade é que nem sempre foi assim. As cruzadas, a inquisição, a caça às bruxas, a apologia do obscurantismo, o poder absoluto de um governante que tem a benção do clero, tudo isso é fácil de entender se concebermos uma sociedade que acredita realmente em tais crendices.
Não podemos deixar que o clero ganhe o poder que já teve. Temos de ser claros: o Céu e o Inferno são invenções humanas. É aqui, nesta vida, que temos de construír um mundo melhor. É aqui, nesta vida – a única que existe, que devemos ser felizes.

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