Quem tem medo do Papão?
É comum ouvir como sendo um forte indício a respeito da existência de Deus, que a crença nele é transversal a todas as culturas. Que Deus é o supremo bem, o infinito, o amor, a paz, a liberdade, a perfeição, o criador, o todo; e que como diferentes culturas em diferentes contextos geográficos históricos e culturais, de diferentes maneiras, encontram uma forma de adorar este ser através de diferentes mitologias que originam diferentes religiões, então seria bizarro que tal ser não existisse. Como explicar que, de tantas formas diferentes, Deus – nas suas diferentes manifestações – tenha sempre acabado por ser adorado em qualquer comunidade?
Em primeiro lugar, devo dizer que essa observação é falsa, e revela um grande desconhecimento a respeito do mundo que nos rodeia. Os deuses das diferentes culturas do passado e do presente estiveram longe de representar todos a paz, a perfeição, o bem, o infinito, etc… Desde os deuses da guerra que surgiram facilmente em diferentes culturas (no panteão grego e romano, no panteão escandinavo, etc…), até às imperfeições e defeitos humanos que vários deuses tinham, passando pelas suas limitações e finitude do seu poder, parece que todas as características atribuídas a Deus podem ser facilmente demonstradas não transversais.
Isto para não falar nas várias comunidades e perspectivas que nem sequer consideram a existência de deuses: seria forçado falar num Deus do budismo ou taoismo, mas ainda mais disparatado falar num Deus do confucionismo. E no entanto, várias comunidades aderiram a estas formas de pensar.
Mas sou da opinião que, mesmo que verdadeira, tal observação provaria algo diferente.
A figura do Papão é transversal a várias culturas (não todas), se bem que com diferentes nomes, e diferentes pormenores em relação à forma de agir. O ponto central é o mesmo: é bom que as crianças se portem bem, ou o Papão pode castigá-las.
Isso não quer dizer que a figura do Papão exista, ou tenha algo de verdadeiro, quer apenas dizer algo mais simples: que em diferentes culturas e contextos históricos, os pais das crianças estão dispostos a inventar uma figura que não existe para velar pelo seu comportamento. É fácil e expectável que várias culturas criem vários «Papões» visto que essa necessidade é transversal.
Algumas culturas podem responder a essas necessidades de outras formas, mas não existe nada de sobrenatural na forma como os diferentes «Papões» vão surgindo aqui e ali.
A necessidade de explicação para a chuva, o sol, ou a criação também é transversal, e o medo da morte também. Isso não tem nada de sobrenatural, e também é perfeitamente natural que diferentes culturas acabem por criar mitos que dão respostas a essas questões.
As crianças crescem e deixam de acreditar no Papão. Nós já vimos que os mitos da religião falham nas explicações que deram e dão para os mistérios da natureza, e que é a ciência que os vai desvendando. Estamos a crescer e temos de enfrentar o nosso medo da morte, conhecer bem o mundo que nos rodeia – sem mentiras e ilusões – para melhor o transformar num lugar melhor. Começa a não fazer sentido continuar a acreditar no Papão.