[continuação]
Mas, chegados aqui, uma pergunta coloca-se: não existindo base racional para votar “Não”, existe alguma base racional para votar “Sim”? A minha opinião é que sim, existe de facto essa base racional para votar “Sim”, e que, ao mesmo tempo, essa base racional nos diz que é mesmo urgente ir votar “Sim” no próximo dia 11. A base racional para o “Sim” são os muitos estudos que têm sido feitos sobre a IVG clandestina, a IVG legal, e os seus impactos em diversos países (tanto países onde a IVG é legal como onde é criminalizada). Um estudo (de natureza estatística, logo racional e científica) particularmente focado no caso de Portugal, é o estudo efectuado pela “Associação para o Planeamento da Família”, sobre as práticas de aborto em Portugal, e que pode ser encontrado, por exemplo, aqui. Acho importante salientar que, numa discussão saudável, racional e séria sobre o referendo do próximo dia 11, nos devemos restringir apenas aos assuntos que estão em cima da mesa para debater. E, neste caso, a questão única que devemos abordar é se concordamos ou não com a criminalização da IVG até às 10 semanas (é particularmente importante salientar que nunca nos é perguntado se concordamos ou não com a IVG, apenas nos é perguntado se concordamos ou não com a sua criminalização). Mais ainda, acho importante salientar que, nessa mesma discussão, e por forma a que seja de facto racional e séria, apenas devemos usar dados obtidos seguindo os mesmo critérios: dados de natureza científica, que descrevem com rigor o cenário com que nos deparamos. Nesse caso, o estudo da APF é particularmente relevante, e é um estudo que nos indica que apenas pode haver uma escolha racional para o nosso voto: o voto “Sim”. Naturalmente que, sobre opções de voto sem qualquer base racional, não vou (nem me compete) me pronunciar.
O que sabemos então sobre o cenário da IVG clandestina em Portugal? Um cenário que, acrescente-se, é reconhecido por todos, defensores do “Sim” ou do “Não”, como extremamente preocupante e que necessita de solução urgente—daí também a necessidade urgente de votar “Sim” no referendo de dia 11. Sabemos quatro factos que me parecem importantes:
1 — O número de IVG clandestinas em Portugal é de cerca de 18 mil por ano. Isto são aproximadamente 50 IVG clandestinas por dia, ou 2 por hora. São IVG cometidas sem quaisquer condições de segurança, de higiene, e de acompanhamento médico. São actos de natureza médica cometidos na mais profunda clandestinidade. São IVG que produzem verdadeiras vítimas: mulheres. Mulheres que acabam por ter problemas de saúde, sejam menores, sejam graves, ou seja a própria morte, pelo facto de a IVG até às 10 semanas se encontrar criminalizada, e por serem obrigadas a recorrer à IVG clandestina, sem quaisquer condições de segurança, de higiene, e de acompanhamento médico.
2 — Sabemos que, destas 18 mil mulheres por ano que recorrem a uma IVG clandestina, 3 mulheres por dia necessitam de internamento devido a complicações decorrentes da natureza clandestina da IVG. Mulheres que assim têm problemas de saúde, sejam menores, sejam graves, ou seja a própria morte, pelo facto de a IVG até às 10 semanas se encontrar criminalizada, e por serem obrigadas a recorrer à IVG clandestina, sem quaisquer condições de segurança, de higiene, e de acompanhamento médico.
3 — Sabemos que 73% dessas IVG clandestinas são efectuadas até às 10 semanas, e sabemos ainda que, de todas as mulheres que já recorreram a uma IVG, a grande maioria destas (83%) realizou uma única IVG (e nenhuma “porque sim”).
4 — O número de IVG efectuadas por mulheres portuguesas em clínicas espanholas, e seguindo dados oficiais, é de cerca de 1500 por ano. Isto são aproximadamente 4 por dia. Mulheres com recursos suficientes para fugir à clandestinidade da IVG portuguesa, conseguindo fugir também a todos os problemas que uma IVG clandestina acarreta.
Aqui temos os factos. As únicas vítimas da lei vigente têm um número: duas mulheres por hora. Duas mulheres portuguesas recorrem a uma IVG clandestina até às 10 semanas por hora. Sem quaisquer condições de segurança, de higiene, e de acompanhamento médico. Estes são os números. Os números de um problema que todos reconhecem como gravíssimo e que deve ser resolvido. Porque queremos acabar com o problema da IVG clandestina, e porque queremos acabar com todas as complicações decorrentes da IVG clandestina, sejam menores, sejam graves, ou seja a própria morte. Não pode haver nada mais urgente para fazer dia 11, do que votar “Sim” e pôr fim a este problema. Para que essas mulheres deixem de ser vítimas de uma lei sem base racional.
Mas acresce também dizer alguma coisa sobre os países onde a IVG se encontra legalizada, e sobre os quais também se conhecem muitos estudos, efectuados precisamente por esses mesmos diversos países em que a IVG foi descriminalizada. E acresce dizer duas coisas que me parecem ser particularmente importantes para os defensores do “Não”. A primeira coisa, para todos aqueles preocupados com os aspectos morais da IVG—e que, como vimos, não podem dar base racional ao “Não”—, é dizer que, em todas as sociedades onde a IVG até às 10 semanas se encontra despenalizada, não se observa qualquer ruptura na estabilidade colectiva, ou dos valores colectivos, dessa mesma sociedade. Pelo contrário, observa-se um sentimento de modernidade, de justiça, de liberdade e—muito importante—de igualdade entre os sexos. A segunda coisa que acresce dizer é que, e segundo muitos desses mesmos estudos, o número de IVG pode diminuir com a sua despenalização, exactamente por essas mesmas sociedades mostrarem a modernidade necessária para produzir programas de planeamento familiar efectivos e ao alcance de todos.
Por tudo isto, dia 11 é urgente votar SIM.
[Também no Esquerda Republicana]
Dois mil anos de mentiras impostas por meios vigorosos, com a cumplicidade do poder secular, parecem verdades irrefutáveis que legiões imensas de supersticiosos e beatos se esforçam por perpetuar e disseminar.
As tradições e os interesses instalados jogam a favor das intrujices primárias e dos mais inverosímeis embustes. Todas as religiões se dizem criadas pelo único Deus verdadeiro, donde se conclui facilmente que são todas falsas menos uma, na melhor das hipóteses, e, provavelmente, todas.
Mas quem convence o clero das religiões monoteístas a exercer uma actividade normal, a ter uma profissão honesta e a abdicar do poder que as funções pias conferem?
Um dia Guerra Junqueiro disse para Tomás da Fonseca: «Ó Tomás, aos padres, com a barriga cheia, tanto lhes dá que as pessoas da Santíssima Trindade sejam 3 como 300».
O clero é quem menos acredita em Deus e quem mais se esforça por persuadir os outros. Depois de João Paulo II, supersticioso eivado do catolicismo jurássico da sua Polónia, não é provável que apareça outro Papa que acredite em Deus, mas nenhum terá a coragem de voltar a dizer:
«A fábula de Cristo é de tal modo lucrativa que seria loucura advertir os ignorantes do seu erro». (Leão X – Papa)
Neste momento venho anunciar o meu desejo de sair da equipa da Diário Ateísta. Não porque não me reveja na linha editorial ou por estar em desacordo com outros membros em algum ponto concreto. Longe disso, penso que sempre existiu (e existe) um amplo espaço para que todos os pontos de vistas ateus fossem expressados. O que está em causa aqui é o meu grau de compromisso intelectual para com o conceito de ateísmo. Neste momento, por razões extremamente pessoais (nas quais prefiro não entrar…), abandonei esse compromisso e não posso honestamente pertencer a este muito bom, excelente, grupo.
As minhas posições fora do ateísmo continuam iguais e não será pela minha saída que não darei todo o apoio que puder a todas as iniciativas que visem a liberdade e dignidade humana. Espero continuar a ser um comentador do DA por muitos anos apesar de por razões de coerência interna e honestidade para com o resto da equipa e os leitores não poder continuar a escrever. Obrigado a todo(a)s pelo muito que aprendi ao longo deste período.
Saio pela mesma razão que entrei, vontade de ser coerente, e não por pressão de seja quem for.
Um abraço a todo(a)s,
Pedro Fontela
[continuação]
Estes são os principais argumentos apresentados pelos movimentos de apoio ao “Não”. São, também, e do meu ponto de vista, argumentos desprovidos de qualquer base racional. Para além destes dois argumentos principais, têm também sido postos a circular uma série de argumentos “menores”. Argumentos com o único objectivo de tentar convencer a votar “Não” quem descarta, de forma racional, os dois argumentos anteriores, em forma análoga à que é feita em cima. Mas estes argumentos “menores”, tal como o nome indica, são mesmo de qualidade inferior aos anteriormente desconstruídos. Podemos rapidamente revelar a irracionalidade por detrás de cada um deles (sem nenhuma ordem particular):
— O argumento financeiro. Um argumento que tem estado na berra na campanha em out-door é o argumento financeiro. Quanto vai custar a eventual IVG legal, e quem a vai pagar? Essa pergunta é uma pergunta legítima, mas nunca pode ser feita sem fazermos primeiro a pergunta: quanto custa actualmente a IVG clandestina e quem a paga? Recentemente, Boaventura Sousa Santos escreveu um artigo na revista Visão a mostrar que, se queremos de facto olhar apenas para as cifras, a IVG clandestina custa mais, e quem a paga são todos os contribuintes. A título de exemplo, alguns números do seu artigo indicam que, de todas as mulheres que anualmente recorrem à IVG clandestina (estimadas em cerca de 18 mil por ano, de acordo com o recente estudo da “Associação para o Planeamento da Família” que abordaremos mais adiante), cerca de 3600 destas (isto são cerca de 10 mulheres por dia) têm problemas de saúde, com um terço dessas a necessitarem de internamento (ou seja, aproximadamente 3 mulheres por dia a necessitarem de internamento). Muitas ficam com problemas crónicos de saúde. Isto, em contrapartida a uma IVG feita em estabelecimento de saúde autorizado, onde a IVG será feita a maior parte das vezes por ingestão de fármacos, com custos marginais. A cifra clandestina naturalmente aumenta quando a lei vigente criminaliza a IVG e, consequentemente, requer—pelo menos em princípio—investigação policial e subsequente julgamento. Numa nota pessoal, devo dizer que acho todo este assunto da questão financeira de muito mau gosto, mas se é para ser desconstruída, pois seja, continuemos. Esta suposta questão financeira em apoio do “Não” é de base argumentativa tão fraca que, mesmo se de facto a IVG clandestina fosse mais barata, o argumento não pegava: é que, estando a analisar os custos associados a um grave problema de saúde pública nacional, e chegando à conclusão que não os queremos pagar, podemos sempre usar esse mesmo argumento no que diz respeito a qualquer outro problema de saúde pública nacional. Eu, que nem fumo e até faço desporto, poderia, nesta “lógica” financeira, recusar a ver dinheiro dos meus impostos ser gasto no combate aos malefícios do tabaco ou no combate às doenças cárdio-vasculares. Naturalmente não o faço pois, apesar da probabilidade de eu vir a sofrer dessas doenças ser inferior à média nacional, mesmo assim sei que a sociedade, como um todo, fica a lucrar com a existência e acção desses mesmo programas. Em resumo, o “argumento financeiro” não só não faz sentido pois o custo real na realidade poderá baixar, como, mesmo que aumentasse, não poderia servir como argumento para impedir a resolução de um grave problema de saúde pública nacional. Finalmente, para quem quiser reflectir sobre os custos sociais das maternidades não desejadas, recomendo a quem não conhece a letra da música Pátria que me Pariu, do músico brasileiro Gabriel, o Pensador, e que pode ser encontrada aqui.
— O argumento religioso. Este argumento baseia-se em dogmas religiosos para tentar justificar a escolha no voto “Não”. É perfeitamente claro que quaisquer argumentos de índole religiosa, pela sua própria natureza, não são argumentos de carácter racional mas antes de raíz dogmática. Mais ainda, é óbvio que não compete a ninguém fazer qualquer julgamento moral sobre as escolhas religiosas de cada pessoa, mas da mesma forma a nenhuma pessoa religiosa compete fazer qualquer julgamento sobre o código penal de um dado estado, quando esse julgamento é feito com base em princípios de natureza religiosa, pelo menos não num estado laico. Não podendo esse género de argumentos servir assim como base legisladora num estado laico, não me parece também muito correcto fazer uso deles numa campanha eleitoral. Independentemente da minha opinião, fica, no entanto, a falta de motivos racionais nesta orientação de voto. É ainda de salientar que, muito perto deste argumento, se encontram também argumentos relativos a posições de natureza moral ou filosófica. Certamente nenhuma posição deste tipo de natureza (religiosa, moral ou filosófica) pode ser criminalizada num estado livre, como queremos que seja o nosso. Pelo contrário, esta é uma linha de pensar particularmente próxima de estados totalitários, em que códigos de natureza religiosa, moral ou filosófica são impostos na população através de leis de criminalização. Existem sem dúvida muitas posições, sejam de natureza religiosa, moral ou filosófica, com as quais não concordamos de todo, mas nem por isso nos passa pela cabeça as criminalizar. Assim sendo, nenhuma destas razões pode funcionar como argumento racional para suportar uma posição de voto que implique a sua criminalização: todas as escolhas de natureza religiosa, moral ou filosófica não podem ser criminalizadas e devem pertencer à livre escolha de qualquer cidadão. Mas existem ainda dois pontos curiosos, associados a estas posições. Um está associado à posição religiosa. Este argumento é contraditório mesmo que seja considerado puramente dentro da sua natureza religiosa: cerca de 20% de todas as gravidezes acabam em aborto espontâneo. Seria certamente estranho classificar como “errada” a IVG até às 10 semanas, com base em argumentos religosos que consideram a vida humana como “sagrada”, quando—nesta linha de pensar—precisamente 20% de todas as gravidezes acabam por sofrer IVG “divina”. O outro ponto curioso é que, mostra a experiência, quando em condições de tragédia pessoal ou familiar, as posições morais ou filosóficas são das primeiras a ser postas de parte, por forma a se encontrar uma solução para o problema. E, neste caso, além de irracional, tal atitude só poderia ser classificada como de hipocrisia.
— O argumento associado à campanha visual. Este não é tanto um argumento, mas mais uma campanha que tenta precisamente atacar o lado emocional das pessoas, mostrando-lhes fotografias de bébés e tentando sugerir assim que o que está em causa no que diz respeito à IVG até às 10 semanas é, numa linguagem mais directa, “matar criancinhas”. Eu penso que não é preciso extender-me muito sobre a natureza de uma campanha visual nestes moldes. Apenas me parece importante salientar que nenhuma dessas imagens naturalmente corresponde a um feto de menos de 10 semanas. A julgar sobre dados extrapolados para eventuais futuras IVG legais, caso o “Sim” vença, sabemos que os embriões em causa terão tamanhos típicos a rondar os 4 a 20 milímetros, e que qualquer semelhança visual com as imagens que nos são apresentadas pelas campanhas do “Não” são simplesmente inexistentes. Isto, naturalmente, classifica esse tipo de campanha visual como mentirosa. O que a classifica como irracional é a sua tentativa de apelar ao lado emocional dos eleitores (ao invés de seguir por uma linha de discussão esclarecedora e séria).
— O argumento da saúde psíquica da mulher. Este argumento diz-nos que a opção por uma IVG pode vir a causar problemas para a saúde psíquica da mulher que a escolheu fazer. Aceitemos os dados estatísticos desses estudos como verdadeiros (eu digo “aceitemos” pois, no estudo que vi, e que servia de suporte a uma campanha pelo “Não”, não estava medida a existência ou não de correlações entre problemas psíquicos anteriores e posteriores à descrita IVG, e logo não me pareceu um estudo que permitisse imediatamente aceitar causalidade). Bom, mas aceitemos de qualquer forma esses dados como verdadeiros. Neste caso, como se pode racionalmente defender que este é um argumento para votar “Não”? Parece-me que, racionalmente, este é um argumento para votar “Sim”: se queremos de facto salvaguardar a saúde psíquica de uma mulher, e sabendo que o número de IVG não diminui por esta ser criminalizada, mas apenas faz com que essas mesmas IVG ocorram em situações de clandestinidade ou de fuga para o estrangeiro, então ao votar “Não” estamos precisamente a contribuir para agravar as condições de saúde psíquica da mulher que optou por uma IVG até às 10 semanas. Pelo contrário, ao votar “Sim”, estamos a optar para que essa mesma mulher, e em acordo com a eventual futura lei, possa receber acompanhamento psiquiátrico antes da realização da IVG e que, se decidir levar esta mesma por diante, possa fazê-la em condições condignas com o acto médico de que se trata, e possa ainda vir a receber acompanhamento psiquiátrico após a realização da IVG. Parece-me que este tipo de argumento é um argumento que nos força racionalmente a votar “Sim”, não podendo nunca suportar a posição do “Não”, excepto num contexto carregado de hipocrisia, ao fazer salientar um problema e oferecer como sua possível solução uma opção—a criminalização—que únicamente serve para agravar o problema que se diz querer ver resolvido!
— Finalmente, o argumento que acho mais redutor e ofensivo para com as mulheres, entre todos os que têm sido apresentados nos movimentos pelo “Não”, é o argumento que diz que, se o “Sim” vencer, então uma mulher pode efectuar uma IVG “só porque lhe apetece”. Como se alguém pudesse alguma vez tomar essa opção de forma leviana! Eu devo dizer que, pessoalmente, acho este argumento de um profundo moralismo (e já em cima expliquei porque argumentos de natureza moral não podem nunca servir de base racional para a legislação num estado livre e democrático). Mais do que isso, acho que este argumento mostra também uma forte dose de machismo e frustração pessoal. Mas, considerações sobre a natureza psicológica de quem profere estes argumentos postas de parte, vejamos porque também este argumento não tem base racional: não tem base racional pois, como é indicado por qualquer estudo estatístico (como, por exemplo, o estudo conduzido pela “Associação para o Planeamento da Família”, que abordaremos mais adiante), naturalmente de base racional e científica, essa nunca é, nem nunca foi, a razão indicada pelas mulheres para a escolha da opção da IVG. Assim, não existe base racional para um argumento desta natureza, pois este é contrariado pelos estudos feitos nesse mesmo sentido.
[continua]
Não há dúvida de que a Igreja católica é pela vida. A fazer pela vida exterminou índios; a tratar da vida queimou hereges; na defesa da vida eterna eliminou ímpios.
A ICAR sempre foi uma referência na defesa da vida, fosse nas torturas que usava a Inquisição, procurando que as vítimas resistissem durante o máximo tempo, no esbulho de bens dos incrédulos para que a vida dos seus padres estivesse livre para Deus, ou na venda de indulgências aos pecadores para que a vida do clero fosse flauteada.
A vida sempre foi o objectivo. Quando grelhava réprobos era para lhes assegurar a vida eterna; quando fazia escravos era para os baptizar e livrar das trevas; se raptava crianças era para lhes assegurar a vida celestial.
Quem pode ser tão obstinado pela vida a ponto de garantir a eternidade a quem ame e obedeça ao único Deus verdadeiro?
O fundamentalismo levou o Papa, os bispos, padres e outros primatas pios a defenderem a vida desde o espermatozóide até ao óvulo, trajecto que acompanham com pias orações e devotado afecto.
Todos os primatas paramentados andam numa dobadoira a policiar vaginas e espreitar glandes para que não se percam na estrada da infertilidade os veículos da vida.
É esse grande desígnio que os leva a condenar as provetas e a reprodução medicamente assistida. Se os homens e as mulheres começarem a fazer filhos como se fazem tractores corre-se o risco de que o acto sexual se transforme em método para fabricar veículos, enquanto as almas, feitas doidas, se perdem no caminho.
Há quem confunda uma cultura com os mitos que lhe deram origem ou que ela própria criou. Há quem atribua a Deus os livros que se lhe referem como se a Pantera Cor-de-rosa passasse a existir pelas histórias a que deu origem.
Do Islão não vale a pena falar. Está no estertor uma civilização tribal onde o sagrado e o profano se plasmam sob a violência do clero e onde os constrangimentos sociais fazem da mulher um ser sem vontade, dignidade ou direitos. É um furúnculo místico na lepra de uma sociedade medieval. O Islão é cruel, misógino e troglodita.
Quanto ao cristianismo podemos dizer que foi o húmus da civilização, da liberdade, e da própria democracia, não por vontade própria mas porque gerou no seu seio a antítese dialéctica que conduziu à modernidade.
Resistem padres e o negócio. O Vaticano é o bazar que vende indulgências, cria santos e cardeais, intriga e destabiliza os países democráticos. O líder dos prosélitos é o Papa e distingue-se pelos sapatinhos vermelhos e vestidos de bom corte e pelo azedume que lhe provocam a progressiva secularização da Europa e a laicidade.
O Igreja ortodoxa, com exegetas ainda mais reaccionários, alapa-se aos Estados e vive como fungo que parasita o poder secular.
Os protestantes dividem-se em numerosas seitas e raramente descuram a influência no aparelho de Estado. Há-os tolerantes e exaltados, os que têm a mania que falam com Cristo e os que se limitam a escrever em notas de dólar que acreditam em Deus.
Cristo é, nos negócios da fé, o idiota útil. Apresentam-no como curandeiro e vendedor da banha da cobra, filho de uma pomba estúpida e de uma atrasada mental que precisou de um anjo para lhe dizer que estava grávida. Os pormenores vieram depois, à medida que o negócio prosperou, para estupefazer os simples e assombrar os crédulos.
É por isso que hoje encontramos a toponímia das cidades cheias de nomes de santos, os montes poluídos com capelas, as esquinas das ruas pejadas de nichos pios e o sinal mais a reproduzir-se nas paredes, enquanto o pobre Cristo, com ar de delinquente, exibe os cravos e as chagas à misericórdia dos devotos.
[continuação]
Mas então urge perguntar: se a vida humana tem tantos aspectos distintos, o que nos caracteriza a nós, pessoas completamente formadas e desenvolvidas, como especiais? Por que razão a minha individualidade é distinta do meu cabelo ou das minhas outras células? Esta questão está ligada a muitas das confusões que o “Não” faz em relação à especificidade da condição humana. Alguns colocam essa especificidade numa definição cárdio-vascular, achando que o bater do coração é que nos distingue como especiais. Mas, como já vimos no exemplo do corpo ligado a uma máquina de suporte artificial de vida, ao qual foi declarada a morte cerebral, o funcionamento cárdio-vascular em condições perfeitas em nada desfaz o facto de essa pessoa estar pura e simplesmente morta, como pessoa, e que haja qualquer impedimento a que se desligue a máquina. Mais ainda, qualquer animal tem um sistema cárdio-vascular perfeitamente funcional, mas isso não nos impede de reconhecer uma imensa diferença entre um ser humano e um outro qualquer animal. Nesse caso, qualquer argumento de natureza cárdio-vascular não tem qualquer base racional e não pode ser usado, pelo menos não de uma forma séria. Outros defensores do “Não” colocam a especificidade da condição humana no património genético. Mas dois gémeos partilham o mesmo material genético e, no entanto, todos os reconhecemos como pessoas distintas. Podem ser parecidos físicamente, é certo, mas as suas individualidades nunca são postas em causa: eles pensam de maneira diferente. Eu possuo código genético misturado dos meus pais, e se calhar tenho os olhos de um e o sorriso de outro, mas a minha forma de pensar é únicamente minha. Pois é precisamente isso que nos caracteriza como seres individuais: eu não sou apenas o bater do meu coração ou o meu património genético. Acima de tudo mais eu sou os impulsos eléctricos e as reacções químicas que neste momento se desenrolam na rede neuronal que constitui o meu cérebro. Essa, e não outra, é a definição correcta de vida humana: a actividade cerebral superior. Essa, e não outra, é a definição correcta para decretar a morte de uma dado indivíduo e é também aquela que deve ser usada para decretar o surgimento de um novo indivíduo. Tudo o resto que se possa dizer não tem expressão científica concreta. E, no que diz respeito à despenalização da IVG até às 10 semanas, é muito importante que se esclareça: não existe actividade cerebral superior num feto de 10 semanas. Esta apenas começa a surgir entre as semanas 23 e 26. Isto explica também por que se escolhe um determinado número de semanas até às quais se descriminaliza a IVG: estritamente falando, quando nos referimos ao desenvolvimento fetal humano, devemos destinguir uma série de fases; até à terceira semana estamos na fase de “pré-implantação”, até à décima semana estamos no período “embriónico”, e só depois disso entramos no período “fetal”. Daí a escolha das 10 semanas; não é um número aleatório como já ouvi alguns movimentos do “Não” sugerir.
Passemos então a um segundo argumento do “Não” e que, apesar de distinto, segue de muito próximo o argumento anterior relativo à defesa absoluta da vida humana. Este segundo argumento é o seguinte: a diferença no caso do feto é que este, na ausência de influência exterior, tem uma grande probabilidade de um dia se vir a tornar num ser de carne e osso completamente desenvolvido. Esta afirmação é verdadeira. Mas também é verdadeira para muitas das células do meu corpo, que eu poderia clonar, ou para o meu modo de vida: em vez de estar aqui a escrever, poderia estar a tentar procriar e produzir o maior número possível de futuros seres humanos. Se não o faço, é por opção pessoal, e não a vejo criminalizada. Vejamos: como acabei de descrever em cima, um feto de 10 semanas não possui a característica fundamental, de um ponto de vista racional e científico, que nos caracteriza como seres humanos, como indivíduos: actividade cerebral superior. Se não a possui, na realidade a sua eventual morte não produz uma vítima humana, no sentido que verdadeiros crimes produzem vítimas humanas. Certamente não produz mais uma vítima humana que produziria o cortar da minha mão esquerda (quantos clones meus lá morreram junto com a pobre mão?). E esse acto não é criminalizado. O que os defensores do “Não” nos querem fazer acreditar é que a IVG até às 10 semanas produz uma futura vítima humana. Este conceito, seja de um ponto de vista jurídico, ou mesmo de um ponto de vista de puro argumento, é surreal: a porta da “vítima futura” abre espaço imediato ao colapso da sociedade, ainda para mais no presente contexto de clonagem e fecundação in vitro que nos rodeia. De facto, a minha escolha de não me clonar imediatamente está a gerar um sem número de “vítimas futuras”. É importante salientar que a minha clonagem não vai produzir cópias exactas da minha pessoa: vai criar seres distintos, individuais, que pensam por si mesmos, com as suas próprias vivências, que apenas partilham o meu material genético. Vai criar os meus gémeos. Em número infinito. Na “lógica” da “vítima futura”, a não clonagem imediata de toda a raça humana está a criar um genocídio sem proporções! Da mesma forma, a escolha individual de cada um de nós em não ter filhos, ter um filho, ter dois filhos, etc, está a produzir como vítimas futuras todas aquelas crianças que optámos por não ter. Mas esta ideia é de todo irracional. A ideia das “vítimas futuras” criminaliza-nos a todos por não nos dedicarmos exclusivamente à multiplicação exponencial da nossa espécie. Mas uma pessoa não pode ir a tribunal nem ser presa por um crime que nunca cometeu (além do facto de que a multiplicação exponencial de qualquer espécie leva ao seu desaparecimento, o que também não seria uma decisão muito racional para se tomar). Em resumo, o argumento da “vítima futura” não tem base racional para suportar o voto no “Não”, com o risco de se abrir a porta a criminalizar todos os outros aspectos, que não sejam os de concentração exclusiva na reprodução, da vida normal de uma sociedade moderna, livre e democrática, como aquela que queremos que seja a nossa. No que diz respeito à IVG, as verdadeiras vítimas não são futuras nem são fetos. São as mulheres que se vêem forçadas a recorrer à IVG clandestina, que as coloca na total ausência de condições de higiene e de segurança médica para realizar aquilo que é única e exclusivamente um acto médico. São as mulheres que acabam por ter problemas de saúde, sejam menores, sejam graves, ou seja a própria morte, pelo facto de a IVG até às 10 semanas se encontrar criminalizada. Essas são as únicas vítimas, e acabar com a existência dessas vítimas está precisamente ao alcance do nosso voto no próximo dia 11.
[continua]
O Diário de uns ateus é o blogue de uma comunidade de ateus e ateias portugueses fundadores da Associação Ateísta Portuguesa. O primeiro domínio foi o ateismo.net, que deu origem ao Diário Ateísta, um dos primeiros blogues portugueses. Hoje, este é um espaço de divulgação de opinião e comentário pessoal daqueles que aqui colaboram. Todos os textos publicados neste espaço são da exclusiva responsabilidade dos autores e não representam necessariamente as posições da Associação Ateísta Portuguesa.