Sobre a Irracionalidade do "Não" e a sua Desconstrução (4/5)
[continuação]
Estes são os principais argumentos apresentados pelos movimentos de apoio ao “Não”. São, também, e do meu ponto de vista, argumentos desprovidos de qualquer base racional. Para além destes dois argumentos principais, têm também sido postos a circular uma série de argumentos “menores”. Argumentos com o único objectivo de tentar convencer a votar “Não” quem descarta, de forma racional, os dois argumentos anteriores, em forma análoga à que é feita em cima. Mas estes argumentos “menores”, tal como o nome indica, são mesmo de qualidade inferior aos anteriormente desconstruídos. Podemos rapidamente revelar a irracionalidade por detrás de cada um deles (sem nenhuma ordem particular):
— O argumento financeiro. Um argumento que tem estado na berra na campanha em out-door é o argumento financeiro. Quanto vai custar a eventual IVG legal, e quem a vai pagar? Essa pergunta é uma pergunta legítima, mas nunca pode ser feita sem fazermos primeiro a pergunta: quanto custa actualmente a IVG clandestina e quem a paga? Recentemente, Boaventura Sousa Santos escreveu um artigo na revista Visão a mostrar que, se queremos de facto olhar apenas para as cifras, a IVG clandestina custa mais, e quem a paga são todos os contribuintes. A título de exemplo, alguns números do seu artigo indicam que, de todas as mulheres que anualmente recorrem à IVG clandestina (estimadas em cerca de 18 mil por ano, de acordo com o recente estudo da “Associação para o Planeamento da Família” que abordaremos mais adiante), cerca de 3600 destas (isto são cerca de 10 mulheres por dia) têm problemas de saúde, com um terço dessas a necessitarem de internamento (ou seja, aproximadamente 3 mulheres por dia a necessitarem de internamento). Muitas ficam com problemas crónicos de saúde. Isto, em contrapartida a uma IVG feita em estabelecimento de saúde autorizado, onde a IVG será feita a maior parte das vezes por ingestão de fármacos, com custos marginais. A cifra clandestina naturalmente aumenta quando a lei vigente criminaliza a IVG e, consequentemente, requer—pelo menos em princípio—investigação policial e subsequente julgamento. Numa nota pessoal, devo dizer que acho todo este assunto da questão financeira de muito mau gosto, mas se é para ser desconstruída, pois seja, continuemos. Esta suposta questão financeira em apoio do “Não” é de base argumentativa tão fraca que, mesmo se de facto a IVG clandestina fosse mais barata, o argumento não pegava: é que, estando a analisar os custos associados a um grave problema de saúde pública nacional, e chegando à conclusão que não os queremos pagar, podemos sempre usar esse mesmo argumento no que diz respeito a qualquer outro problema de saúde pública nacional. Eu, que nem fumo e até faço desporto, poderia, nesta “lógica” financeira, recusar a ver dinheiro dos meus impostos ser gasto no combate aos malefícios do tabaco ou no combate às doenças cárdio-vasculares. Naturalmente não o faço pois, apesar da probabilidade de eu vir a sofrer dessas doenças ser inferior à média nacional, mesmo assim sei que a sociedade, como um todo, fica a lucrar com a existência e acção desses mesmo programas. Em resumo, o “argumento financeiro” não só não faz sentido pois o custo real na realidade poderá baixar, como, mesmo que aumentasse, não poderia servir como argumento para impedir a resolução de um grave problema de saúde pública nacional. Finalmente, para quem quiser reflectir sobre os custos sociais das maternidades não desejadas, recomendo a quem não conhece a letra da música Pátria que me Pariu, do músico brasileiro Gabriel, o Pensador, e que pode ser encontrada aqui.
— O argumento religioso. Este argumento baseia-se em dogmas religiosos para tentar justificar a escolha no voto “Não”. É perfeitamente claro que quaisquer argumentos de índole religiosa, pela sua própria natureza, não são argumentos de carácter racional mas antes de raíz dogmática. Mais ainda, é óbvio que não compete a ninguém fazer qualquer julgamento moral sobre as escolhas religiosas de cada pessoa, mas da mesma forma a nenhuma pessoa religiosa compete fazer qualquer julgamento sobre o código penal de um dado estado, quando esse julgamento é feito com base em princípios de natureza religiosa, pelo menos não num estado laico. Não podendo esse género de argumentos servir assim como base legisladora num estado laico, não me parece também muito correcto fazer uso deles numa campanha eleitoral. Independentemente da minha opinião, fica, no entanto, a falta de motivos racionais nesta orientação de voto. É ainda de salientar que, muito perto deste argumento, se encontram também argumentos relativos a posições de natureza moral ou filosófica. Certamente nenhuma posição deste tipo de natureza (religiosa, moral ou filosófica) pode ser criminalizada num estado livre, como queremos que seja o nosso. Pelo contrário, esta é uma linha de pensar particularmente próxima de estados totalitários, em que códigos de natureza religiosa, moral ou filosófica são impostos na população através de leis de criminalização. Existem sem dúvida muitas posições, sejam de natureza religiosa, moral ou filosófica, com as quais não concordamos de todo, mas nem por isso nos passa pela cabeça as criminalizar. Assim sendo, nenhuma destas razões pode funcionar como argumento racional para suportar uma posição de voto que implique a sua criminalização: todas as escolhas de natureza religiosa, moral ou filosófica não podem ser criminalizadas e devem pertencer à livre escolha de qualquer cidadão. Mas existem ainda dois pontos curiosos, associados a estas posições. Um está associado à posição religiosa. Este argumento é contraditório mesmo que seja considerado puramente dentro da sua natureza religiosa: cerca de 20% de todas as gravidezes acabam em aborto espontâneo. Seria certamente estranho classificar como “errada” a IVG até às 10 semanas, com base em argumentos religosos que consideram a vida humana como “sagrada”, quando—nesta linha de pensar—precisamente 20% de todas as gravidezes acabam por sofrer IVG “divina”. O outro ponto curioso é que, mostra a experiência, quando em condições de tragédia pessoal ou familiar, as posições morais ou filosóficas são das primeiras a ser postas de parte, por forma a se encontrar uma solução para o problema. E, neste caso, além de irracional, tal atitude só poderia ser classificada como de hipocrisia.
— O argumento associado à campanha visual. Este não é tanto um argumento, mas mais uma campanha que tenta precisamente atacar o lado emocional das pessoas, mostrando-lhes fotografias de bébés e tentando sugerir assim que o que está em causa no que diz respeito à IVG até às 10 semanas é, numa linguagem mais directa, “matar criancinhas”. Eu penso que não é preciso extender-me muito sobre a natureza de uma campanha visual nestes moldes. Apenas me parece importante salientar que nenhuma dessas imagens naturalmente corresponde a um feto de menos de 10 semanas. A julgar sobre dados extrapolados para eventuais futuras IVG legais, caso o “Sim” vença, sabemos que os embriões em causa terão tamanhos típicos a rondar os 4 a 20 milímetros, e que qualquer semelhança visual com as imagens que nos são apresentadas pelas campanhas do “Não” são simplesmente inexistentes. Isto, naturalmente, classifica esse tipo de campanha visual como mentirosa. O que a classifica como irracional é a sua tentativa de apelar ao lado emocional dos eleitores (ao invés de seguir por uma linha de discussão esclarecedora e séria).
— O argumento da saúde psíquica da mulher. Este argumento diz-nos que a opção por uma IVG pode vir a causar problemas para a saúde psíquica da mulher que a escolheu fazer. Aceitemos os dados estatísticos desses estudos como verdadeiros (eu digo “aceitemos” pois, no estudo que vi, e que servia de suporte a uma campanha pelo “Não”, não estava medida a existência ou não de correlações entre problemas psíquicos anteriores e posteriores à descrita IVG, e logo não me pareceu um estudo que permitisse imediatamente aceitar causalidade). Bom, mas aceitemos de qualquer forma esses dados como verdadeiros. Neste caso, como se pode racionalmente defender que este é um argumento para votar “Não”? Parece-me que, racionalmente, este é um argumento para votar “Sim”: se queremos de facto salvaguardar a saúde psíquica de uma mulher, e sabendo que o número de IVG não diminui por esta ser criminalizada, mas apenas faz com que essas mesmas IVG ocorram em situações de clandestinidade ou de fuga para o estrangeiro, então ao votar “Não” estamos precisamente a contribuir para agravar as condições de saúde psíquica da mulher que optou por uma IVG até às 10 semanas. Pelo contrário, ao votar “Sim”, estamos a optar para que essa mesma mulher, e em acordo com a eventual futura lei, possa receber acompanhamento psiquiátrico antes da realização da IVG e que, se decidir levar esta mesma por diante, possa fazê-la em condições condignas com o acto médico de que se trata, e possa ainda vir a receber acompanhamento psiquiátrico após a realização da IVG. Parece-me que este tipo de argumento é um argumento que nos força racionalmente a votar “Sim”, não podendo nunca suportar a posição do “Não”, excepto num contexto carregado de hipocrisia, ao fazer salientar um problema e oferecer como sua possível solução uma opção—a criminalização—que únicamente serve para agravar o problema que se diz querer ver resolvido!
— Finalmente, o argumento que acho mais redutor e ofensivo para com as mulheres, entre todos os que têm sido apresentados nos movimentos pelo “Não”, é o argumento que diz que, se o “Sim” vencer, então uma mulher pode efectuar uma IVG “só porque lhe apetece”. Como se alguém pudesse alguma vez tomar essa opção de forma leviana! Eu devo dizer que, pessoalmente, acho este argumento de um profundo moralismo (e já em cima expliquei porque argumentos de natureza moral não podem nunca servir de base racional para a legislação num estado livre e democrático). Mais do que isso, acho que este argumento mostra também uma forte dose de machismo e frustração pessoal. Mas, considerações sobre a natureza psicológica de quem profere estes argumentos postas de parte, vejamos porque também este argumento não tem base racional: não tem base racional pois, como é indicado por qualquer estudo estatístico (como, por exemplo, o estudo conduzido pela “Associação para o Planeamento da Família”, que abordaremos mais adiante), naturalmente de base racional e científica, essa nunca é, nem nunca foi, a razão indicada pelas mulheres para a escolha da opção da IVG. Assim, não existe base racional para um argumento desta natureza, pois este é contrariado pelos estudos feitos nesse mesmo sentido.
[continua]