De bioética, ciência e tolices sortidas – II
Excertos de um texto de Carlos Fiolhais, publicado com o título «BIOÉTICA OU AS TRAPALHADAS EM QUE BIÓLOGOS E MÉDICOS SE (NOS) METERAM»
Há, no Texas, uma cidade com o nome bem latino de Corpus Christi. Fica no Sul da América do Norte nas costas do Golfo do México.
Os habitantes de Corpus Christi votaram no dia 19 de Janeiro de 1991 num referendo municipal para responder à pergunta «quando começa a vida humana». Mais precisamente, a questão consistia em adicionar a lei local à frase «a vida começa com a concepção».
63% dos votantes mostraram-se contrários a tal medida, apesar da abstenção ter sido muito elevada. O jornal de Chorpus Christi deu o maior espaço da primeira página ao resultado do referendo, esquecendo a Guerra do Golfo em que nesse mesmo dia as tropas norte-americanas estavam empenhadas.
Pode-se bem imaginar, sem lá ter estado, a quantidade de argumentos científicos e teológicos, médicos e éticos, que apareceram na campanha eleitoral…
A campanha foi marcada por confrontações violentas. Os argumentos foram, portanto, bem menos intelectuais do que seria desejável. O bispo lá da terra, que usa um chapéu de cow-boy, à moda do J.R. do «Dallas», excomungou sumariamente dois médicos católicos que, ao que parece, dirigiam clínicas onde se praticavam abortos.
Um dos sheriffs do sítio (não, não há só sheriffs nos filmes de cow-boys, também os há em Corpus Christi!) mandou erguer placards com a sua posição sobre o assunto: «My first duty is to GOD», assim mesmo com maiúsculas em GOD e tudo. Um dos activistas da campanha anti-aborto explicou resumidamente o modo como votou no referendo: «Deus quer que salvemos as suas crianças porque esta cidade tem o seu nome».
Inspirado pelo bispo e com a complacência do sheriff, os mais extremistas tentaram fazer «operações de salvamento» nas ditas clínicas, usando a força. A mulher do sheriff foi presa na tentativa de ocupação de uma clínica, pelo que os polícias receberam ordem para não interferir. «Deus está acima da lei», é a tradução da frase do chefe da polícia.
(…)
E em Portugal? Tem-se debatido com profundidade e conhecimento de causa as questões bioéticas, cada vez mais actuais e prementes, tanto da vida como da morte? Têm cientistas e políticos trocado informações e ideias? Têm ao grande público chegado mais do que o «fait-divers» dos jornais, que noticiam o que acontece a norte-americanos e a outros?
O autor destas linhas vai em crer que se se fizesse um inquérito sumário na Assembleia da República sobre o modo como é geneticamente determinado o sexo de um filho ou o que é uma morte cerebral a resposta seria um espelho do que é a realidade do país: ignorância pura e simples dos factos biológicos mais simples. É, evidentemente, imprescindível a ética. Mas, uma ética sem ciência é uma ética analfabeta.
Ninguém nos dias de hoje, quando a biologia é determinante para o futuro do homem, se pode dar ao luxo de ser um analfabeto científico e de nada saber sobre questões que se, se é certo que têm componentes políticas, culturais e religiosas, exigem também e à partida conhecimentos científicos. Os políticos deviam começar por dar o exemplo da alfabetização científica. Quando um dia aprenderem o que é o código genético ou o que é uma mutação in vitro, já será demasiado tarde. A falha de ética ou o défice de ciência, podem, juntas ou separadas, vir-nos a custar o futuro.
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