Ciência e Sobrenatural
«Por azelhice minha não reparei que o Santiago tinha criticado o meu post sobre as alegadas limitações naturalistas da ciência. Peço desculpa pela falha, e vou aqui responder às criticas, que desde já agradeço.
Eu proponho duas coisas. Primeiro, que não importa para a análise científica de um fenómeno se o chamamos de natural ou sobrenatural. Segundo, que o conhecimento científico moderno é naturalista porque não há nada de sobrenatural no universo em que vivemos.
Vou começar pelo segundo, que o Santiago criticou desta forma:
«O meu agnosticismo militante impede-me de aceitar sem um pio a peremptória afirmação de o Universo não ter sido equipado com “acessórios” sobrenaturais (como é que ele sabe? Foi algum “ser sobrenatural” que lhe garantiu a sua própria não existência?)»
O agnosticismo é irrefutável, pois podemos decidir exigir sempre mais evidência. O que é difícil é fazê-lo com coerência, mas disso falarei noutra altura.
No século XVII o químico alemão Georg Ernst Stahl propôs que as substâncias combustíveis contém flogisto, que se libertava para o ar durante a queima e que era absorvido pelas plantas. Lavoisier acabou por demostrar que era ao contrário, que era o oxigénio que se ligava ao combustível e não o flogisto que se libertava. Mas antes da ideia do flogisto ser consensualmente rejeitada houve quem propusesse que o flogisto tinha massa negativa, para explicar porque a queima de algumas substâncias fazia aumentar a sua massa. Parece-me que já era uma hipótese bem próxima do sobrenatural. A lepra, as tempestades, a origem da vida e das espécies, e muitos outros fenómenos já foram rotulados de sobrenatural enquanto não foram compreendidos. Hoje em dia tudo o que observamos e compreendemos aparenta ser natural. O sobrenatural foi, e é, sempre o que nunca se observou (deuses e espíritos invisíveis) ou o que não se compreendeu. Não posso rebater o agnosticismo do Santiago se ele exige certezas absolutas, mas a tendência é clara e a preponderância da evidência reunida até agora favorece a hipótese de não haver acessórios sobrenaturais neste universo.
A outra questão é se a ciência como método pode avaliar hipóteses acerca do sobrenatural. Eu dei o exemplo de dois modelos para a fertilidade do solo, um baseado na química e outro na influência de espíritos ou deuses, e propus que se comparasse os modelos numa experiência controlada: fertilizantes químicos de um lado, rezas do outro, e ver o que produzia mais. A objecção do Santiago parece-me estranha:
«Não me parece particularmente feliz ir buscar o exemplo de uma actividade puramente tecnológica (a agricultura) para argumentar que devemos preferir a explicação científica por ser a mais bem sucedida.»
Não vou comentar a implicação que devemos preferir, como explicação, a explicação menos bem sucedida. O importante aqui é que a ciência, como método, consiste em compreender um fenómeno através de modelos desse fenómeno. Para cada modelo deduzimos consequências, comparamo-las com o que observamos do fenómeno, e seleccionamos os modelos mais adequados ao que observamos. É praticamente inevitável que um modelo adequado permita alguma aplicação prática, tecnológica, desse conhecimento, daí ser estranha a objecção do Santiago. Mas não preciso ficar-me pela agricultura. Qualquer modelo que faça previsões acerca dum fenómeno observável pode ser testado desta forma, seja natural ou sobrenatural. Talvez o Santiago possa dar um exemplo de um modelo sobrenatural que faça previsões concretas mas que não se possa testar.
O problema é a ideia comum que a ciência lida com a natureza. Não é verdade. A ciência lida com modelos: ideias, hipóteses, teorias, especulação. São esses que a ciência constrói, rejeita, repara, compara, aperfeiçoa. Como os modelos são sempre modelos de algo, é necessário observar algum aspecto desse algo para obter os modelos mais adequados. Mas esse algo basta que seja observável. Se é natural não natural é indiferente.
O que está para além da ciência é aquilo que não se pode observar (como criar modelos disso?) ou modelos que não se consegue ligar a nada (mas para que servem esses?). Mas talvez seja isso que quer dizer a palavra sobrenatural: modelos incompreensíveis de coisas que nunca se observa.»
——————————–[Ludwig Krippahl]