História da Carochinha
Esta é uma péssima história de moral, senão pelo menos duvidosamente ambígua. Porquê? Porque ninguém merece ser abandonado à morte por causa das suas más qualidades. A vingança não é uma resposta justa às atitudes incorrectas dos outros e matar aqueles que nos magoaram é desproporcionado, violento e injusto.
É verdade que esta história pretende ensinar que não devemos julgar os outros pela sua riqueza. Será que ensina que a vingança pela morte é uma resposta justa para os gananciosos? Bem, também não deixa de ser verdade que não ensina o oposto. É por isso que não é uma boa lição. Não há histórias perfeitas mas um pai atento deveria questionar o filho sobre a atitude da carochinha para ensinar o que não está lá.
À criança que pergunta como é possível que escaravelhos se casem com roedores, falem uns com os outros e se alimentem de feijoada, responde-se naturalmente que a história é a fingir, não é real e pretende apenas ser um exemplo. Os animais podiam ser outros, podiam ser pessoas ou até mesmo objectos personificados. Isso é irrelevante e o que conta é que interpretemos as acções de indivíduos que têm o mesmo grau de entendimento e que o nosso, sejam eles quem ou o que forem.
Imagine-se agora defender a moral da história como um todo, com base no argumento de que não se pode esquecer o contexto – no fundo, são animais os seus intervenientes. Imagine-se que se argumenta que negar a moralidade desse punimento execrável é negar também o resto da moral da história, é negar a moral como um todo. Imagine-se que se argumenta que é por causa da história da carochinha que hoje em dia nós temos os valores que temos e que o oposto é falso.
Imagine-se que se pretende preservar a veracidade literal da história, dizendo que os animais, no fundo, comunicam entre si de formas ainda desconhecidas pelo homem, que há até animais que roubam objectos brilhantes e outros que mantêm laços para a vida, que as relações interespécies já foram observadas na natureza e que se sabe que os ratos comem facilmente alimentos confeccionados pelos seres humanos.
Imagine-se que se afirma que não é todo e qualquer um que pode avaliar a qualidade moral dos ensinamentos desta história sem primeiro conhecer muito bem Hans Christian Andersen, os irmãos Grimm, a história do folclore e as línguas em que são escritas as histórias populares. Imagine-se que se temem os contos populares estrangeiros com medo de perder a identidade e a moral. Imagine-se que o facto de outros contos populares partilharem preceitos comuns e chegarem a conclusões semelhantes é usado como prova de que o nosso conto deve ser levado a sério. Imagine-se que se diz que substituir a carochinha por outro animal qualquer é adulterar de forma perigosa e irracional a mensagem da história.
Fazer qualquer uma destas coisas seria desnecessário, ridículo e indefensável. Mas é o que acontece se criticarmos a história da carochinha que dá pelo nome de Bíblia.