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Mês: Dezembro 2006

20 de Dezembro, 2006 Carlos Esperança

Quem tem medo de um cadáver?

«Ele está no meio de nós»
+ António, Bispo de Angra

Não há bispo nem padre que não nos ameace com o cadáver desaparecido, há cerca de vinte séculos, dizendo que está no meio de nós.

Os mortos e a morte foram sempre instrumento de promoção da fé, alimento dos medos colectivos e objecto de chantagem sobre supersticiosos e beatos. Vejam que os ociosos, que dedicaram a vida à oração e à contemplação mística – espécie de estado vegetativo – aproveitaram a morte para obrar milagres.

Vão-se esquecendo os crentes que da madeira da suposta cruz onde Cristo, depois de pregar, acabou pregado, foram vendidas toneladas, para relicários, quando o comércio de relíquias atingiu o auge em plena Idade Média. A ferradura, a figa e outros amuletos, de eficácia comprovada, pouco valiam perante uma apara de madeira com certificado de origem passado pelo Vaticano.

São cada vez mais exíguas as mercadorias que os pios devotos compram para protecção pessoal. Água do rio Jordão, saquinhos de terra de Jerusalém e ramos de azinheira, de Fátima, são dos raros artigos que ainda se vêem em casas de gente devota.

Cuecas de Santo Escrivá ou calcinhas de madre Teresa são tesouros que os museus das Ordens conservam mas que não estão disponíveis no mercado.

Com JP2 ainda se vendiam fotografias mas do actual Papa ninguém as compra a não ser para assustar crianças que recusam a sopa.

É por isso que o cadáver de Cristo, desaparecido em condições estranhas e exportado para o Céu depois do número da ressurreição, continua a ser anunciado como objecto de um jogo macabro para ver se alguém o encontra.

«Ele está no meio de nós». Cuidado, não o pisem.

Até agora ninguém tropeçou no cadáver de JC. Resta o cadáver da ICAR que não abdica de fazer retroceder a civilização e intimidar os crentes.

+ Carlos, colaborador do Diário Ateísta

20 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

Organizações cristãs exigem direito à intolerância

A «causa» cristã mais glorificada no momento é o direito à intolerância. Assim, depois de nos Estados Unidos a Christian Legal Society, uma associação de juizes e advogados, ter formado um grupo nacional para revogar nos tribunais federais as políticas de tolerância actuais, a moda cristã de ulular serem «perseguição religiosa» as leis que pretendem acabar com a discriminação baseada na orientação sexual chegou ao Reino Unido, mais concretamente à Irlanda do Norte.

Sete grupos cristãos irlandeses iniciaram uma acção judicial pelo direito de serem intolerantes e poderem discriminar os execrados homossexuais, nomeadamente opondo-se a uma nova lei – Equality Act (Sexual Orientation) Regulations – que entra em vigor na Irlanda do Norte no dia 1 de Janeiro e que bane a discriminação de homossexuais na área de serviços, sendo vedado aos cristãos negarem-se a fornecer serviços e vender bens a homossexuais.

Em Inglaterra, a Sexual Orientation (Provision of Goods and Services) Regulations – uma lei que penaliza a homofobia, nomeadamente a recusa de prestação de serviços a homossexuais, tem sido empastelada pela Opus Dei Ruth Kelly que pretende que a nova lei não se aplique a organizações religiosas para que estas possam continuar a discriminar homossexuais.

Rupert Kaye, presidente da Associação de Professores Cristãos, explica porquê a nova lei é tão inaceitável aos cristãos do Reino Unido que consideram que a tolerância «interferirá com a liberdade de alguém manifestar a sua religião»: «As escolas religiosas não podem nem devem ser obrigadas legalmente a respeitar indíviduos ou organizações cujas crenças ou estilos de vida são anátema para os cristãos».

Isto é, confirmando que a intolerância é indissociável do cristianismo e a já habitual cristianovitimização, os cristãos consideram ser um direito cristão inalienável desrespeitar quem não segue os ditames da sua crença. E carpem-se perseguidos se forem obrigados a respeitar os que não seguem as suas crenças!

Como apontava uma das nossas leitoras no espaço de debate do post «O Público errou», parece plausível que a inventada (e inexistente) «Guerra ao Natal» faça parte das manobras de pressão cristã para evitar que esta lei anti-discriminação entre em vigor!

20 de Dezembro, 2006 jvasco

Carl Sagan

«Um Dragão na minha garagem

– Um dragão que cospe fogo vive na minha garagem.

Suponhamos que eu fazia, com toda a seriedade, esta afirmação. Com certeza o leitor iria querer verificá-la, ver por si mesmo. São inumeráveis as histórias de dragões no decorrer dos séculos, mas não há evidências reais. Que oportunidade!

– Mostre-me – diz o leitor.

Eu levo-o até à minha garagem. O leitor olha para dentro e vê uma escada de mão, latas de tinta vazias, um velho triciclo, mas nenhum dragão.

– Onde está o dragão? – pergunta

– Oh, está ali – respondo, acenando vagamente – Esqueci-me de lhe dizer que é um dragão invisível.

O leitor propõe espalhar farinha no chão da garagem para tornar visíveis as pegadas do dragão.

– Boa ideia – digo eu – mas este dragão flutua no ar.

Então, o leitor sugere o uso de um sensor infravermelho, para detectar o fogo invisível.

– Boa ideia, mas o fogo invisível é também desprovido de calor.

O leitor sugere borrifar o dragão com tinta para torná-lo visível.

– Boa ideia, só que é um dragão incorpóreo e a tinta não vai aderir.

E assim por diante. Eu vou-me oponho a qualquer teste físico que o leitor propõe justificando sempre porque é que não vai funcionar.

Qual a diferença entre um dragão invisível, incorpóreo, flutuante, que cospe fogo atérmico, e um dragão inexistente? Se não há como refutar a minha afirmação, se nenhum experimento concebível vale contra ela, o que significa dizer que o meu dragão existe? A sua incapacidade de invalidar a minha hipótese não é absolutamente a mesma coisa que provar a veracidade dela. Alegações que não podem ser testadas, afirmações imunes a refutações não possuem caráter verídico, seja qual for o valor que possam ter por nos inspirar ou estimular nosso sentimento de admiração. O que eu peço ao leitor é tão somente que, em face à ausência de evidências, acredite na minha palavra. »

—————-Carl Sagan em «Um mundo Infestado de Demónios»

Foi a série Cosmos que comecei a despertar para o ateísmo, enquanto alimentava o meu deslumbramento pela ciência.

Desenvolvi raciocínios, argumentos e reflexões com outros livros de Carl Sagan. Adorei todos os que li.

Hoje é o décimo aniversário da sua morte.
Que a sua obra continue bem viva.

20 de Dezembro, 2006 Carlos Esperança

Notícias do Vaticano

1- Vaticano altera tradução litúrgica da fórmula de consagração do Vinho:
[Sangue de Cristo derramado «por muitos» e não «por todos»]

Comentário: Há quem não goste que lhe sujem o fatinho.

2- Bento XVI: paz na Terra Santa, compromisso de cristãos, judeus e muçulmanos

Comentário: Cuidado, quando esta gente se une é contra alguém.

3- Vaticano afirma que vender ou comprar relíquias é “sacrilégio“, depois que foi descoberto que alguns objectos, que pertenceriam ao Papa João Paulo II, estavam a ser vendidos.

Comentário: Um golpe de génio no negócio paralelo

4 – Vaticano reconhece 2º milagre e frei Galvão deve ser canonizado

Comentário: A bolsa dos milagres abriu em alta esta semana.

5- Vaticano nega que planeie criar clube de futebol

Comentário: Um jogo de cardeais contra arcebispos podia acabar em discussões teológicas e com os paramentos rasgados.

19 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

O Público errou

Dada a relevância do mesmo reproduzo integralmente um texto da Associação República e Laicidade a propósito da invenção de mais uma guerra ao Natal. Apenas mais um exemplo da cristianovitimização omnipresente desde os primórdios do cristianismo e de que assistimos um regresso em força a propósito de tudo e mais umas botas:

O texto de ontem do Público, assinado por António Marujo, parece deliberadamente concebido para criar a ilusão de que existe uma campanha internacional para «proibir» alguns festejos desta época. Esta ilusão é construída através de erros factuais e distorções. Apontamos alguns de seguida.

  1. Alega-se que «um inquérito feito em Novembro revelou que três empresários britânicos em cada quatro proibiram decorações alusivas ao Natal». É falso. A pergunta colocada no inquérito (e que teve 74% de respostas positivas) foi: «admite banir decorações de Natal por se preocupar que possa ofender outras fés?» (?Do you admit to banning Christmas decorations because you are worried about offending other faiths??). Portanto, António Marujo omite (deliberadamente?) a diferença entre ter proibido, e admitir fazê-lo em determinadas circunstâncias, transformando uma hipótese num facto. António Marujo também parece ignorar que o mesmo inquérito alude a uma «obrigação legal de celebrar todas as fés» que não existe, o que levanta a suspeita de que seja um inquérito deliberadamente capcioso, formatado para provar a tese da «perseguição anti-cristã».
  2. António Marujo alega também que «a escola Hilarion Gimeno, de Saragoça (…) decidiu que este ano não haveria festas natalícias, para não incomodar as crianças de outras religiões». É verdade que não haverá festa, mas é falso que tenha sido «proibida», e a razão apontada por António Marujo não é citada pelo director da escola, que assume como principal motivação a falta de espaço físico na escola e a falta de tempo para cumprir o programa curricular.
  3. António Marujo cita ainda dois casos que (assumidamente) estiveram-para-acontecer-mas-não-aconteceram: um peru que não foi trocado por um frango (numa escola), e um rabino de Seattle que pediu que fosse colocado um candelabro ao lado das árvores de natal (num aeroporto), o que não lhe terá sido concedido.
  4. Finalmente, o artigo termina citando a despropósito uma nota da Associação República e Laicidade em que se criticava principalmente a demissão do Ministério da Educação de fomentar actividades na escola pública, ligadas a esta quadra e isentas de carácter catequístico. António Marujo parece implicar que a peça teatral em questão, ao retratar o «anjo Gabriel» e o «nascimento de Jesus», está a referir-se a «factos históricos que estão na origem do Natal». Ignoramos qual a base factual que sustenta estas últimas alegações, muito arriscadas num contexto que se pretende noticioso.

A propósito do mesmo artigo no Público recomendo vivamente a leitura do post «Quando o jornalismo sério parece ser proibido» no Renas e Veados.

19 de Dezembro, 2006 lrodrigues

Entregue à Bicharada

Quase quatro anos e muitas centenas de milhar de mortos depois da invasão, a pergunta mantém-se:
Se George W. Bush e a sua administração sempre souberam que o Iraque não tinha armas de destruição maciça e que Saddam Hussein nada teve a ver com o 11 de Setembro, argumentos que justificaram a invasão, por que carga de água e com que objectivo Bush invadiu afinal o Iraque?

Mas talvez a invasão do Iraque tenha, afinal, um objectivo claro, preciso e bem determinado.
De facto, a explicação para esta aparentemente insólita política de defesa norte-americana é, pelos vistos, extremamente simples.

E tem até um nome: chama-se «Christian Embassy».

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)

19 de Dezembro, 2006 jvasco

O paradoxo do mal – V

«Imaginemos uma aldeia isolada onde vivem cerca de 300 pessoas.

Uma delas é Gunther, um poderoso feiticeiro dotado de enormes poderes de presciência.

Na verdade, Gunther é tão poderoso, que até se sente capaz de criar vida humana, livre, do nada. Como sempre foi totalmente respeitador da Liberdade alheia, se as criar, cria-las-á livres, sem qualquer intenção de que estas vão fazer isto ou aquilo.

No dia 17 de Junho ele decide usar este seu poder. Ocorre-lhe criar o cego Matias, ou então a Maria, ou então o Alberto.

Devido à sua presciência, Gunther sabe que se criar o cego Matias, este cego, livre, usará a sua Liberdade para matar 100 aldeões. Se criar o cego, Gunther não terá esse propósito, mas ele sabe que isso é o que se sucederá.

Gunther também sabe que se criar Ana ou Alberto, eles não matarão ninguém. Poderão fazê-lo, claro, porque são livres, mas Gunther sabe que escolherão livremente não o fazer.

Gunther escolhe criar o cego Matias, e este mata 100 aldeões. Os aldeões que sobraram, desgostosos com a morte de seus familiares, juntam-se e arrastam-no para Tribunal: dizem que a sua decisão de criar Matias resultou na morte de 100 pessoas.

E o leitor? Acha condenável a decisão de Gunther?»

Decorre da mitologia cristã que o criador do mal não pode ter sido outro senão o próprio Deus. Ele terá criado um anjo que se terá tornado o Diabo, a representação metafórica do mal. Sendo Deus omnisciente, sabia que da criação deste anjo decorreria a criação do mal.

Nós julgamos os actos das pessoas pelas suas consequências previsíveis. Não há nada de intrincecamente errado em contraír o dedo indicador, mas se este estiver no gatilho de uma pistola apontada para alguém, é previsível que disso resulte uma morte.

Mas os crentes consideram que Deus, omnipotente e omnisciente, não é responsável pelas consequências (conhecidas!) do seu acto, do qual resultou a criação do mal.

E o mesmo que se aplica às metáforas da criação do Diabo ou da tentação de Adão, poderá aplicar-se a qualquer mal existente. A verdade é que, apesar de todas as considerações a respeito da liberdade, o exemplo dado com Gunther é claro: se um ser omnipotente e omnisciente criou tudo, este ser não poderá deixar de ser responsável pelo mal.

19 de Dezembro, 2006 Carlos Esperança

Deus é pior que a sarna

Os homens, à força de ouvirem que Deus existe, tornam-se crentes e, à medida que o repetem a si próprios, fazem-se beatos.

Deus é uma infeliz criação, difícil de aperfeiçoar. Enquanto as máquinas se melhoram, a partir da dúvida de que nunca são suficientemente perfeitas, Deus só pode piorar porque os clérigos garantem que é infinitamente bom e não admitem a discussão.

Com tal mercadoria minam-se as bases da civilização, perturba-se a paz, impede-se a solidariedade humana.

Deus não é apenas uma criatura pior do que o seu criador – o Homem -, e um troglodita incapaz de se regenerar, é o princípio do mal, o acicate de todos os ódios e crueldades.

Na base do racismo e da xenofobia está Deus na sua despótica inexistência, no seu primitivismo demente, um ser misógino e delinquente, manejado pelos fios invisíveis, tecidos pelas religiões, através dos prestidigitadores profissionais – os clérigos.

Deus e o Diabo são irmãos gémeos, filhos do medo dos homens e explorados em benefício do clero.

As peregrinações são actos de insensatez colectiva em direcção a locais onde os homens inventaram marcas de Deus, centros de exploração da fé e da superstição, locais de receptação onde se esbulham os haveres dos crentes para maior glória dos parasitas de Deus.

Se Deus existisse, os crentes ficariam satisfeitos por serem os únicos com direito a uma assoalhada no Céu para gozarem o ócio eterno na companhia da fauna celeste. Assim, vivem cheios de azedume, envergonhados da sua estultícia, ávidos de converter os outros aos seus próprios erros e fazer deles uns infelizes, à sua semelhança.

Um mundo sem Deus, ou mesmo com muitos, seria certamente mais pacífico, mas a loucura das religiões monoteístas querem fazer do Planeta um antro de fanáticos, de um único Deus, uma perigosa quimera que ensandece os homens, os assusta e imbeciliza.

Deus é um déspota imprevisível com lacaios que não o discutem nem o deixam discutir.

18 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

O embrião segundo a Igreja Católica – II

Uma vez que a ciência desmente os seus dogmas, a Igreja de Roma pela pena de João Paulo II declara-se a expert em embriologia – mais concretamente transforma Pio IX, o cruzado contra a modernidade e paladino contra a ciência, no perito da área – já que os cientistas, que não consideram o embrião uma pessoa, sustentam uma tese caracterizada «por um dualismo profundo, que não é capaz de explicar o ser humano como unidade substancial».

Mas se a ciência para a Igreja não é capaz de explicar o ser do Homem (o que não é verdade como veremos num post seguinte), a versão da ICAR tem mais buracos que uma peneira!

De facto, este ser do Homem é identificado como sendo o genoma, isto é, a «identidade específica de uma pessoa humana» é determinada «fundamentalmente» pelo genoma humano. Ou seja, João Paulo II considera ser um genoma humano uma pessoa não explicitando se existe um gene «sobrenatural» insondável à ciência que codifica a alma ou princípio vital, o tal que caracteriza o homem e a sua «triunidade entre as vidas vegetativa, senciente e intelectual», já expressado, sobrenaturalmente também, no genoma. Isto é, a Igreja que considera não ser uma pessoa apenas a vida vegetativa não consegue explicar onde está a vida senciente (muito menos intelectual) do dito genoma!

Nem consegue explicar a contradição com a própria doutrina da Igreja já que «sendo o princípio vital a forma substancial [da vida] só pode existir um destes princípios animando o ser vivo» o tal princípio vital ou alma não pode estar presente no genoma, que teria de apresentar múltiplos princípios vitais para explicar a existência de gémeos homozigóticos – que partilham o mesmo genoma! De igual forma, não está presente numa célula estaminal totipotente – que pode dar origem a uma infinidade de outras células iguais – cuja investigação é anátema para a Igreja que a considera igualmente uma pessoa…

Na realidade um genoma humana de per se não é uma pessoa nem é o que define o ser do Homem, contrariamente ao que pretende a Pastoral Familiar do Porto que afirma ser o «que caracteriza um ser humano, o que lhe define a identidade, o que o torna um ser irrepetível» apenas «a individualidade do seu genoma», já que se assim fosse os gémeos homozigóticos seriam a mesma pessoa.

Ora suponho que nem mesmo o católico mais fundamentalista pretende que esses gémeos sejam a mesma pessoa. O que os torna pessoas e pessoas distintas não é o código genético que partilham mas sim a forma diferenciada como esse código genético foi transcrito, nomeadamente como se expressou nas proteínas que regulam a migração e crescimento neuronal e posteriormente no estabelecimento de sinapses. Crescimento neuronal -praticamente sem sinapses estabelecidas – que está numa fase muito incipiente no embrião ou feto até às 10 semanas e que não lhe permite qualquer senciência: esta forma de vida humana não tem consciência de si nem do meio ambiente! Não satisfaz sequer os critérios da própria ICAR sobre o que caracteriza uma pessoa…

Assim, a vida humana de que a ICAR é defensora intransigente não é a vida de pessoas é apenas… um código genético! Na realidade, a oposição dos grandes paladinos de óvulos, espermatozóides e células estaminais totipotentes quer à contracepção quer ao aborto reflecte não só a misoginia de quem se considera o dono do útero feminino – e que atribui à mulher a culpa do «Queda», o pecado original da procriação, a tal ponto que para mãe do seu mito tiveram de inventar uma virgem imaculada que concebera sem «pecado» -, como a rejeição pela ICAR do sexo sem fins reprodutivos, pelas razões indicadas no Responsum do Papa que inventou os sete pecados mortais, Gregório Magno (590-604): «O prazer sexual nunca ocorre sem pecado».

A ilegítima imiscuição humana nos desígnios «divinos», que perverte a «sagrada» função procriativa da sexualidade em profanos prazeres carnais, transformando-a numa «tríplice concupiscência»: a «concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida», pechas para o mal advindas do dito «pecado [original]» é uma abominação, uma ideologia do sexo que a ICAR execra e combate na letra da lei dos países em que tem mais poder político.

A contracepção – e o aborto – assim como a homossexualidade são anátemas para a ICAR porque permitem prazer sexual «inconsequente». O sexo deve ser cumprido no espírito de mortificação de quem sabe estar a cometer um pecado apenas admissível como um «duplo efeito», isto é uma acção directa promovida por uma razão moral (ter filhos) que tem um efeito inevitável, não intencional, indirecto e negativo: o prazer sexual.

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18 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

O embrião segundo a Igreja Católica

Face a tudo o que já foi abordado sobre o tema conclui-se que o ponto central da discussão sobre a despenalização do aborto deveria incidir sobre a ontologia do embrião, se é ou não uma pessoa.

Do ponto de vista científico é falso, como pretendem muitos pró-prisão aproveitando-se da falta de conhecimentos científicos da maioria da população, que a ciência diga que a vida começa na concepção. A ciência não pode dizer que há um ponto em que a vida começa porque esta nunca acabou. Tanto o óvulo como o espermatozóide estão vivos, são formas de vida humana. E formas de vida humana a que não concedemos qualquer dignidade ou valor.

A discussão sobre se o embrião é ou não uma pessoa deveria fundamentar-se assim em algo mais concreto que dizer vagamente que é vida humana porque há muitas formas de vida humana que não são pessoas. É necessário discutir aquilo que nos caracteriza e identifica como pessoas, o ser do homem que nos distingue de outras formas de vida, humana ou não!

A concepção do ser do homem continua, no entanto, refém da teologia cristã, que cristalizou num paradigma completamente desadequado ao conhecimento actual.

Concepção resumida numa alocução de João Paulo II aos membros da Pontifícia Academia para a Vida :«há que reconhecer a qualidade essencial que distingue cada criatura humana, pelo facto de ter sido criada à imagem e semelhança do próprio Criador. Constituído de corpo e de espírito na unidade da pessoa, o homem corpore et anima unus (…) possui por essência uma dignidade superior às outras criaturas visíveis, vivas e não vivas».

Ora é essa «qualidade essencial» que caracteriza o ser do Homem e lhe confere uma dignidade superior que a Igreja não consegue explicar quando aparece. De facto, apenas sustenta que «os seres vivos são formados por um corpo biológico organizado e por um princípio vital» sem explicar quando surge esse «princípio vital», que para os humanos a Igreja Católica afirma ser a tal anima que só a ICAR pode salvar.

Mas como mitologias religiosas não devem ser a base de sustentação de qualquer lei num Estado supostamente laico vamos ver o que de facto defendem a ICAR e seus representantes na sociedade civil quando se dizem «defensores intransigentes da vida».

Na encíclica Evangelium Vitae, João Paulo II, evitando declarar expressamente que o momento da animação coincide com o da concepção, afirma que a ciência actual «pode oferecer indicações preciosas para discernir racionalmente uma presença pessoal desde o primeiro surgir de uma vida humana». Não se percebe exactamente o que significa este preâmbulo já que João Paulo II não explicita o que é esta presença pessoal que supostamente a ciência discerne num óvulo e num espermatozóide- o primeiro surgir da vida humana!

O que é para a Igreja a «presença pessoal» é esclarecido quando mais à frente no texto é declarada errada a teoria aristotélica da animação tardia, que foi defendida pela Igreja até 1869, data em que Pio IX, no âmbito da sua guerra declarada à modernidade, proclama, sem qualquer sustentação teológica ou conciliar, o novo dogma da animação imediata – isto é, que a alma entra no corpo no momento da fecundação – e torna um «pecado» o aborto até então aceite pela Igreja.

Ou seja, para a Igreja de Roma a tal presença pessoal que transforma uma forma biológica de vida sem valor intrínseco numa pessoa é a alma que João Paulo II, metendo os pés pelas mãos, afirma que a ciência (?) permite discernir como animando o tal corpo biológico no momento da concepção, mais concretamente declara que a teoria da animação tardia «fundava-se sobre conhecimentos embriológicos errados», mas ao mesmo tempo afirma que o conhecimento embriológico actual está igualmente errado porque «atribui o estatuto de pessoa humana ao embrião só na fase da consciência de si (no final da gestação)»!

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(continua)