Loading

Frei Galvão

Gentes católicas da Terra de Santa Cruz, regozijai: já temos o nosso próprio santo.

Foi divulgado hoje que já pode ser marcada a cerimônia de canonização de frei Galvão, o primeiro santo natural da Terra de Vera Cruz. O motivo é o o “milagre duplo” de uma gravidez de alto risco levada a termo e a cura de uma doença grave do recém-nascido. Segundo essa mãe, “o Brasil inteiro precisava disso. Somos um País muito católico e precisávamos ter um santo nosso”.

Determinar a causa de um evento muitas vezes não é tarefa fácil, e uma das tentações que marcam esse caminho é imaginar que se um evento antecede outro, então é causa dele. Post hoc ergo propter hoc (depois disso, portanto por causa disso), ou Post hoc para os íntimos, é o nome que se dá a esse erro comum. Afinal, anteceder os efeitos pode até ser condição necessária para estabelecer uma causa, mas não é suficiente.

No entanto, é exatamente essa falha em que se se baseia um processo de canonização, assim como a crença em milagres operados por santos: “primeiro eu rezei ao santo, depois meu pedido se realizou, portanto foi realizado pelo santo”. Na verdade, essa é uma mistura de Post hoc com a falácia divina, também conhecida por argumento da incredulidade: “não consigo imaginar como isso aconteceu, então foi Deus”.


Como todo passe de mágica deve vir acompanhado de uma falsa demonstração de que não há truque algum, a Igreja só se pronuncia pela veracidade de uma cura miraculosa se o parecer de junta médica não encontrar nenhuma causa natural para ela. Mas são apenas espelhos e fumaça, pois os médicos e a igreja sabem que essa causa sempre existe, e se chama remissão espontânea.

Vejam bem, esse não é um deslize argumentativo lateral ou ocasional. Toda a história de santos milagreiros, canonização após canonização, “milagre” após “milagre”, milênio após milênio, é um sem-fim de variações do mesmo tema. É sempre a mesma falácia, praticada incessantemente pelo bilhão de católicos vivos e todos mais que os antecederam. Não é apenas um erro crasso, mas um erro crasso entronizado como instituição essencial e permanente da Santa Madre Igreja. Errar é humano, mas sacramentar o erro é profundamente religioso. Esse é um dos muitos motivos pelos quais a religião é coisa das mais perniciosas ao intelecto e à vida humana.

No caso do santo brasileiro, a história não pára por aí. Uma das causas dos milagres teriam sido as “pílulas” ingeridas pela mãe, que contêm três minúsculos pedaços de papel com uma mesma inscrição do Ofício da Santíssima Virgem. Que essas pílulas sejam vendidas e gerem recursos para a Igreja é um pensamento vergonhoso e descabido. Elas são gratuitas. Mas é impossível deixar de ver os benefícios secundários que trazem à Igreja, como o aprofundamento da fé e portanto das doações dos fiéis, a um custo virtualmente nulo. E quem poderia culpá-la? A Igreja precisa se sustentar de uma maneira ou de outra, pois os saldos das contas no Vaticano não crescem às custas de intervenção divina, por estranho que pareça.

As pílulas chegaram a ser proibidas em 1998 pelo cardeal arcebispo de Aparecida, D. Aloísio Lorscheider. Lorscheider chegou a afirmar que os “papeizinhos” eram reflexos da superstição, comparou-os a remédios falsos e disse que as 10 irmãs do mosteiro que os produz não podiam
prejudicar seu dia-a-dia de dedicação integral às orações e penitências (vide referência).

Que uma vida inteira dedicada a atividades rigorosamente inócuas para o restante do mundo não possa ser interrompida para outra atividade inócua é uma pérola à parte do pensamento cristão. Mas o fato é que hoje em dia as pílulas continuam, pois na Igreja Católica, o que conta é a vontade popular. Quando convém, é claro. Mas afinal é de se perguntar que curioso efeito elas teriam.

Será que o nosso sistema digestivo reconhece a diferença entre papéis com diferentes inscrições, dada que a composição e a proporção de tinta seja a mesma? Será que, analogamente à “memória” da água” dos preparados homeopáticos, cada disposição de caracteres impressos leva a tinta a diferentes arranjos moleculares, uma vez dentro do sangue? Ou será que o efeito vem da celulose, que não é digerida nem absorvida, mas permanece no intestino? Impossível discernir, minúsculos humanos que somos perante a imensidão do Senhor. E nem a Igreja alimenta esse tipo de busca pelo saber, que realmente não importa e está fadado a levar a pensamentos impróprios. O que importa é crer.

Se minhas hipóteses reducionistas são pequenas demais e a ingestão é meramente simbólica, talvez um gatilho para a ação sobrenatural, então por que criar qualquer tipo de mediação material? Por que não basta o simples pedido a um deus que tudo pode, tudo vê e tudo ouve? Será necessário impor atividades inúteis uma após a outra para estar bem aos olhos do Criador? Estará aí o mérito do fiel? Por que é que as ações de quem deseja uma cura se parecem tanto com os passos necessários para amplificar o efeito placebo? Primeiro o sujeito se compromete com o tratamento, de corpo e alma, depois ingere uma substância na qual ele tem grande crença e por fim uma eventual cura recebe o fantástico bônus de elevar o status do doente, literalmente às alturas.

Mas deixemos essas especulações vãs, pois o conteúdo das inscrições das pílulas acrescenta leva o evento aos limites do surreal: “Depois do parto, permanecestes Virgem. Mãe de Deus, intercedei por nós”. Ah, bom.

Vamos ver se eu entendi isso…

Um certo religioso que viveu no século retrasado alucinava um sujeito de quase dois mil anos antes que, apesar de ter sido preso, torturado e assassinado aos olhos de todos, é tido atualmente como onisciente, onipresente, onipotente e onibenevolente. Para sermos honestos, não temos como saber se o religioso alucinava ou se ele apenas alegava alucinar para com isso ganhar status entre seus pares. Bem, mas esse religioso, de quem se dizia que levitava e podia estar em dois lugares ao mesmo tempo, criou certas “pílulas” de papel onde se lê que uma mulher manteve seu hímem intacto após conceber e deu à luz àquele mesmo ser onipotente, que foi o mesmo que a fecundou sem sexo ou sêmen. Segundo o religioso, a ingestão das pílulas teria efeitos curativos sobre virtualmente qualquer mal, o que é atestado pelo fato de que, entre as milhares de pessoas que já ingeriram as pílulas, algumas delas sofrem posterior remissão.

Exemplos como esse deveriam deixar claro como a religião é essencialmente incompatível com a ciência e o pensamento crítico. Infelizmente, eles costumam ser encobertos pela novilíngua do cristianismo, que impede os menos inclinados a expor tais eventos pelo que realmente são: afrontas ao intelecto, desprezo para com a verdade, e um enorme, monstruoso desperdício de recursos humanos e econômicos, que poderiam estar postos ao verdadeiro uso da caridade e do amor ao próximo se não fossem essas sandices investidas de imunidade tributária. Simplesmente não há como respeitar a religião.

Perfil de Autor

Website | + posts