O embrião segundo a Igreja Católica
Face a tudo o que já foi abordado sobre o tema conclui-se que o ponto central da discussão sobre a despenalização do aborto deveria incidir sobre a ontologia do embrião, se é ou não uma pessoa.
Do ponto de vista científico é falso, como pretendem muitos pró-prisão aproveitando-se da falta de conhecimentos científicos da maioria da população, que a ciência diga que a vida começa na concepção. A ciência não pode dizer que há um ponto em que a vida começa porque esta nunca acabou. Tanto o óvulo como o espermatozóide estão vivos, são formas de vida humana. E formas de vida humana a que não concedemos qualquer dignidade ou valor.
A discussão sobre se o embrião é ou não uma pessoa deveria fundamentar-se assim em algo mais concreto que dizer vagamente que é vida humana porque há muitas formas de vida humana que não são pessoas. É necessário discutir aquilo que nos caracteriza e identifica como pessoas, o ser do homem que nos distingue de outras formas de vida, humana ou não!
A concepção do ser do homem continua, no entanto, refém da teologia cristã, que cristalizou num paradigma completamente desadequado ao conhecimento actual.
Concepção resumida numa alocução de João Paulo II aos membros da Pontifícia Academia para a Vida :«há que reconhecer a qualidade essencial que distingue cada criatura humana, pelo facto de ter sido criada à imagem e semelhança do próprio Criador. Constituído de corpo e de espírito na unidade da pessoa, o homem corpore et anima unus (…) possui por essência uma dignidade superior às outras criaturas visíveis, vivas e não vivas».
Ora é essa «qualidade essencial» que caracteriza o ser do Homem e lhe confere uma dignidade superior que a Igreja não consegue explicar quando aparece. De facto, apenas sustenta que «os seres vivos são formados por um corpo biológico organizado e por um princípio vital» sem explicar quando surge esse «princípio vital», que para os humanos a Igreja Católica afirma ser a tal anima que só a ICAR pode salvar.
Mas como mitologias religiosas não devem ser a base de sustentação de qualquer lei num Estado supostamente laico vamos ver o que de facto defendem a ICAR e seus representantes na sociedade civil quando se dizem «defensores intransigentes da vida».
Na encíclica Evangelium Vitae, João Paulo II, evitando declarar expressamente que o momento da animação coincide com o da concepção, afirma que a ciência actual «pode oferecer indicações preciosas para discernir racionalmente uma presença pessoal desde o primeiro surgir de uma vida humana». Não se percebe exactamente o que significa este preâmbulo já que João Paulo II não explicita o que é esta presença pessoal que supostamente a ciência discerne num óvulo e num espermatozóide- o primeiro surgir da vida humana!
O que é para a Igreja a «presença pessoal» é esclarecido quando mais à frente no texto é declarada errada a teoria aristotélica da animação tardia, que foi defendida pela Igreja até 1869, data em que Pio IX, no âmbito da sua guerra declarada à modernidade, proclama, sem qualquer sustentação teológica ou conciliar, o novo dogma da animação imediata – isto é, que a alma entra no corpo no momento da fecundação – e torna um «pecado» o aborto até então aceite pela Igreja.
Ou seja, para a Igreja de Roma a tal presença pessoal que transforma uma forma biológica de vida sem valor intrínseco numa pessoa é a alma que João Paulo II, metendo os pés pelas mãos, afirma que a ciência (?) permite discernir como animando o tal corpo biológico no momento da concepção, mais concretamente declara que a teoria da animação tardia «fundava-se sobre conhecimentos embriológicos errados», mas ao mesmo tempo afirma que o conhecimento embriológico actual está igualmente errado porque «atribui o estatuto de pessoa humana ao embrião só na fase da consciência de si (no final da gestação)»!
tag Aborto