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8 de Dezembro – VI

Ao longo desta série de posts* fica claro que todo o reinado de Pio IX é pautado pelo combate à perda de poder político da Igreja – que confirma a citação de Antero de Quental, isto é, consistiu em «fortificar a ortodoxia, concentrando todas as forças, disciplinando e centralizando; empedernir a Igreja, para a tornar inabalável» – ou seja, para tentar recuperar a hegemonia perdida Pio IX acentuou fortemente as prerrogativas papais na área religiosa, debitando dogmas e proclamações sem qualquer discussão prévia dentro da Igreja. Assim, o dogma que criou o feriado que inspirou esta série foi o primeiro definido e proclamado – na bula Ineffabilis – apenas pelo Papa, sem o apoio de um concílio.

Mas o que marca o pontificado deste Papa absolutista que se arrogou a declarar-se infalível – não por coincidência, no mesmo ano em que a Itália anexou os estados pontifícios – são a encíclica Quanta cura (1864) e seu famoso apêndice, o Sílabo de Erros, ou mais concretamente o Syllabus complectens praecipuos nostrae aetatis errores (Sílabo que abarca os principais erros do nosso tempo) que, para além da defesa da intolerância religiosa, condenam explicita e veementemente a democracia, a laicidade, a pretensão dos governos em legislar sem os auspícios do papa, o feminismo que dava os primeiros tímidos passos, o progresso e a civilização moderna. Enfim, tudo que fosse ou parecesse moderno merecia o anátema da Igreja de Roma, que bramia estar sob ataque de forças demoníacas empenhadas em desacreditar ou destruir os dogmas da fé!

Mas as manobras de Pio IX para segurar as rédeas do poder secular, nomeadamente a centralização no Papa de todo o poder, foram contraproducentes para as ambições papais já que os governos europeus viram claramente os propósitos de Roma e uma onda de saudável anti-clericalismo varreu a Europa como resposta. Como o confirma a carta circular em que o chanceler Bismarck alerta em 1872 os governos europeus para o facto de, após o concílio Vaticano I, os bispos se terem tornado meros instrumentos do Papa. Num discurso no Reichstag em 1872, Bismarck afirma mesmo que:

«Não acredito que, depois dos dogmas recentemente expressos e publicamente promulgados pela Igreja Católica, seja possível a um poder secular chegar a uma concordata, sem que esse poder seja, em certa medida ou de alguma maneira, humilhado.»

Otto von Bismarck unificou a Alemanha sob o controle prussiano e após a incorporação dos estados católicos do sul e parte do que é hoje a Polónia, não via com bons olhos que os católicos, representados pelo Partido do Centro Católico – o tal que uns anos depois deu de bandeja a chancelaria a Hitler -, colocassem a autoridade papal acima da autoridade do estado alemão. Assim, tentou restringir e conter o poder político de Roma com a Kulturkampf (a luta cultural devidamente condenada por Pio IX na encíclica de 1875 Quod Nunquam), especialmente com o Kanzelparagraph – que ameaçava com até dois anos de prisão os clérigos que fizessem declarações políticas dos púlpitos – e, por exemplo, a introdução do casamento civil.

Para além da Alemanha, o despotismo papal que se traduzia na recusa de Pio IX em reconhecer a legitimidade do poder temporal de qualquer governo que não aceitasse ser regido pelos ditames do Vaticano, nomeadamente a recusa de Pio IX em aceitar o novo estado monárquico constitucional italiano e a excomunhão de todos os católicos que participassem em qualquer processo democrático, tiveram como consequência o oposto do pretendido pelo Papa. De facto, o poder católico na sociedade civil foi diminuindo um pouco por toda a Europa, nomeadamente com a secularização do ensino e a instituição do casamento civil, mesmo em países como a Áustria, um país tradicionalmente católico.

Secularização do ensino que sempre foi um espinho cravado na Igreja de Roma que considerava ser um «direito inalienável da Igreja» a lavagem cerebral desde tenra idade, como é reiterado na encíclica de Pio XI, Divini Illius Magistri. Recordo que as únicas divergências de Pio XI e Pio XII com Hitler e Mussolini tinham exactamente a ver com a educação dos jovens, que ambos carpiam ser direito da Igreja e não dos estados nazi e fascista, respectivamente.

O reconhecimento de que a linha de acção de Pio IX era contraproducente para as ambições de poder de Roma ditou a aparente reconciliação com a modernidade do papa seguinte, Leão XIII (1878-1903), que embora declarando na bula Immortale Dei ser a democracia incompatível com o catolicismo – isto é, com a autoridade da igreja – tentou uma reaproximação menos despótica com diversos governos europeus. O desentendimento com o estado italiano, no entanto, perdurou até ao Tratado de Latrão, assinado no antigo palácio papal em 1929 entre o Papado e o regime fascista de Benito Mussolini (mediante o qual foi criado o Estado do Vaticano e a Igreja recebeu uma astronómica quantidade de dinheiro em troca do apoio à ditadura fascista).

De qualquer forma, e como ligação para os posts seguintes, importa reter que toda a actuação de Pio IX se insere numa luta política de manutenção de poder e sequer remotamente tem a ver com questões de fé. Isto é, os dogmas que introduziu e as declarações que produziu, muitas delas em total discordância com a tradição católica, tentavam simplesmente assegurar o poder temporal de Roma.

Assim, a proclamação por Pio No No, em total discordância com a própria doutrina da Igreja, de que o aborto é um pecado imperdoável, merecedor de excomunhão automática, qualquer que seja o momento em que seja feito, tem de ser contextualizada na sua guerra desesperada contra o modernismo e a ciência e não traduz qualquer reflexão teológica sobre o tema. Reflexão teológica desencorajada por Roma a partir de então já que a negação da declaração quasi dogmática e quasi infalível de Pio IX, sem qualquer suporte teológico, filosófico ou ontológico, lançaria suspeitas sobre os restantes dogmas «infalivelmente» declarados !

* 8 de Dezembro
8 de Dezembro – II
8 de Dezembro – III
8 de Dezembro – IV
8 de Dezembro – V

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