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350 000 portuguesas em idade fértil já abortaram

Foi ontem apresentado na Maternidade Alfredo da Costa o estudo «A Situação do Aborto em Portugal: Práticas, Contextos e Problemas», assente numa sondagem encomendada pela APF à Consulmark.

Para além do autismo subjacente aos protestos dos movimentos pró-prisão em relação ao facto de um organismo público ter albergado a divulgação do estudo – mas não protestaram, claro, a apresentação do livro pró-prisão «Vida e Direito», da autoria de Matilde Sousa Franco, na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, igualmente um organismo público – importa reflectir nos resultados deste estudo, que desmistifica algumas lendas urbanas em torno do tema.

O estudo indica que 350 mil mulheres em idade fértil (isto é, entre os 18 e os 49 anos) já terão abortado em Portugal. Pessoalmente considero que estes números pecam por defeito – e conheço muitas mulheres que sei terem abortado e se recusam a admiti-lo – também pelo facto de a sondagem se ter restringido a mulheres em idade fértil, isto é, a mulheres que cresceram e viveram na época de contraceptivos mais eficientes e acessíveis. Estou certa que se inquiridas mulheres da geração da minha mãe, em que os contraceptivos eram de mais difícil acesso e menos eficazes e o «desmancho» algo banalizado no «sub-mundo» das mulheres, estes números seriam muito mais avassaladores.

De qualquer forma, estes números demonstram claramente que o aborto não é, como pretendia um conhecido fazedor de opinião da nossa praça, «uma questão residual». Na realidade, e como este «exercício fútil e idiota mas às vezes dá vontade de o ser…» da Shyznogud indica, usando um método contraceptivo com uma eficiência de 99,5% – que é um valor optimista e não entra em conta com possíveis problemas, por exemplo gastro-intestinais, que anulam o efeito dos contraceptivos orais – todas as mulheres fertéis têm uma probabilidade, calculada de forma conservadora, de pelo menos 1,5 gravidezes indesejadas!

E o estudo indica que muitas destas gravidezes indesejadas são interrompidas, não obstante a lei, e – como refere o médico pró-despenalização Constantino Sakellerides, da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) e ex-director-geral da Saúde – torna evidente que as mulheres não tomam a decisão de abortar «com ligeireza»- a maior parte diz que a decisão foi «difícil» ou «dificílima».

O estudo ressalta ainda o problema de saúde pública que o aborto clandestino constitui já que quase 35% das mulheres ouvidas fala em complicações pós-aborto. Dessas, 27,4% precisaram mesmo de internamento hospitalar. Em um terço dos casos em que foi usado um medicamento abortivo, foi necessário concluir o processo num estabelecimento de saúde.

Isto é, os que ululam o espantalho SNS, ignoram, para além dos traumas psicológicos e físicos que a situação constitui, os custos actuais da criminalização do aborto, comparáveis ou até superiores àqueles que a despenalização acarretaria mesmo se a IVG fosse integralmente suportada pelo SNS, o que duvido!

No Público de sábado entre os artigos dedicados à tese de mestrado sobre o aborto de Andreia Peniche (links reservados a assinantes) retiro o que considero ser o cerne da questão no referendo de 11 de Fevereiro e que o estudo evidencia:

«A autora aponta ‘a dificuldade em perceber as mulheres como seres autodeterminados e capazes de escolhas responsáveis e morais‘».

Ou seja, num país que foi pioneiro na abolição da pena de morte, o que indica que a população nacional não aceita que qualquer que seja a dignidade ética de um determinado indíviduo esta se sobreponha à dignidade intrínseca de uma pessoa humana, todos (ou quase, há uma percentagem muito pequena de fundamentalistas católicos que quer uma lei análoga à da Nicarágua, que condena à morte todas as mulheres que tenham uma gravidez ectópica) aceitam e aprovam o aborto por escolha médica. Mas desses, muitos não aceitam o aborto por escolha da mulher! Isto é, para esses o aborto não é intrinsecamente algo errado o que é errado (ou fútil) é permitir que se realize por escolha da mulher!

Subentendendo a aceitação do aborto por opção médica – uma vez que estou certa que os mesmos que consideram justa a actual lei não aceitariam o assassínio de alguém por indicação médica ou outra – que muito poucos em Portugal consideram ser uma pessoa o embrião ou feto abortado, o que está em causa é o paradigma católico da mulher que ainda impera em Portugal. Mulheres que sendo mais «fracas de espírito» e «atreitas» às tentações do Demo não têm competência moral para tomar este tipo de decisões devendo estas ser feitas por outrem, que ajuizam as motivações femininas para abortar!

Assim, o que vamos votar no próximo dia 11 de Fevereiro é mais do que a despenalização do aborto! Vamos igualmente decidir que modelo de sociedade queremos seja a nossa! Porque uma lei que reflecte claramente falta de confiança na mulher, que não a considera capaz de tomar decisões, corresponde a uma sociedade que não se coaduna com os valores que supostamente deveriam ser os nossos, assente nos direitos do Homem. Se o resultado do referendo for NÃO, a nossa é quanto muito uma sociedade que reconhece (apenas) os direitos do homem…

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