31 de Dezembro, 2006 Palmira Silva
Guerra no reino de Preste João – III
Não despicienda em todo o conflito que tem redesenhado em sangue as fronteiras nesta zona assolada por uma seca devastadora, causada pelo desflorestamento e pela erosão do solo, é a questão religiosa – a Etiópia é o único país de maioria cristã na zona – que está igualmente subjacente à alteração da influência soviética na Somália por uma influência norte-americana.
De facto, a Somália subsistiu durante a Guerra Fria com ajuda soviética, que apoiou a ditadura marxista corânica de Barre até 1977, data da guerra do Ogaden, altura em que passou para a esfera de influência dos americanos.
Para além de outros factores que determinaram esta alteração de campo da Somália no xadrez da Guerra Fria, esta mudança pode ser traçada à conversão ao «verdadeiro Salvador» de Siad Barre, o ditador brutal da Somália entre 1969 e 1991. Por volta desta data, Barre passou a pertencer a uma célula de oração da Familia ou Fellowship, que integrava senadores – nomeadamente o senador republicano Chuck Grassley – e generais norte-americanos que canalizaram apoio militar para o «irmão em Cristo» somali.
De facto, durante a administração Reagan floresceram as células de «Deus» instituidas há setenta anos por Abraham Vereide, uma rede de poder semi-clandestina cujos membros são generais, senadores, pregadores e executivos de grandes empresas, cujo objectivo é a construção do Reino de Deus na Terra com capital em Washington*.
A «Worldwide Spiritual Offensive» destas células dedica-se à expansão mundial do poder americano como forma de expansão do Evangelho apoiando, por exemplo e para além de Barre, Carlos Eugenios Vides Casanova em El Salvador e os esquadrões de morte salvadorenhos. Aqueles a que muitos chamam a Mafia cristã foram ainda muito activos no combate aos ateus comunistas apoiando ditadores como o marechal Artur da Costa e Silva no Brasil, o general Suharto na Indonésia, e o general Gustavo Alvarez Martinez nas Honduras.
No entanto, este apoio de devotados cristãos à ditadura militar de Barre não conseguiu superar o fracasso na guerra de Ogaden, no início de 1978. Por outro lado, a popularidade cada vez maior dos movimentos armados da oposição no Norte e depois no Sul da Somália, no fim do anos 80 – que ditaram a queda da ditadura em 1991 e a ascensão dos «senhores da guerra» – explica-se por uma série de factores que a Família, pouco preocupada com questões «menores», não teve em devida conta: subemprego exponencial nos meios urbanos, queda brusca da produção industrial, subsequente à retirada dos cooperantes técnicos do bloco de Leste, e implosão económica, caracterizada por um endividamento internacional massivo.
Os mesmos factores que tornaram pasto fértil para o fundamentalismo islâmico uma Somália predominantemente muçulmana sunita e desde 1991 imersa em guerra civil. Desde Junho deste ano grande parte do território somali, a capital Mogadíscio inclusive, estava sob controle da guerrilha islâmica sob o nome «União dos Tribunais Islâmicos», que impusera a lei islâmica no território controlado.
*Sam Brownback, o republicano que os teocratas querem ver na presidência dos Estados Unidos em 2008 e que se converteu ao catolicismo em 2002 através da Opus Dei, pertence a uma destas células, com a qual se reúne para rezar (e conspirar, acrescentaria eu) todas as terças-feiras. As regras da «Família» proibem que se divulgue os nomes dos irmãos em Cristo mas pensa-se incluir esta célula, entre outros teocratas congressistas, o senador Tom Coburn, que pede a pena de morte para os «aborticidas».
Como escreve Jeff Sharlet neste indispensável artigo da Roling Stone, Brownback e os seus «irmãos» são os guardadores de promessas de Deus, os defensores por «ordem divina» do casamento e dos cidadãos em estado embrionário e fetal. São os eleitos que assumiram o amor paradoxal do [mítico] Cristo de Mateus 10:34 «Eu não vim para vos trazer a paz mas sim a espada».