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Mês: Novembro 2006

3 de Novembro, 2006 jvasco

O Homem segundo a Religião

Esta treta ocorreu-me recentemente, daquelas coisas que fazem click na cabeça. Em geral, nas religiões Ocidentais a nossa espécie é vista como algo especial, separado do resto do reino animal por alguma propriedade única. Somos o animal racional.

Mas o que é ser racional? Não deve ser pensar, aprender, ou ter inteligência, porque isso muitos animais também fazem. Principalmente nos primatas, há claras evidências que animais não humanos concebem planos complexos, antecipam acontecimentos, e assim por diante.

Racional, para ser algo único à nossa espécie neste planeta deve querer dizer ter razões. Nós somos capazes de dar e exigir razões para fundamentar uma afirmação. Gritar «Vem aí uma àguia!» até os macacos Colobus conseguem. Mas perguntar «Como é que sabes?», uma das perguntas favoritas dos meus filhos, é aparentemente uma capacidade única dos humanos.

O curioso (e irónico) é que é precisamente esta capacidade que as religiões normalmente querem suprimir. Chamam-lhe fé. Como se fosse um acto, como se fosse uma coisa e não apenas a ausência do daquilo que nos distingue como humanos: perguntar por que razão havemos de aceitar algo como verdade.

——————————–[Ludwig Krippahl]

3 de Novembro, 2006 Carlos Esperança

Interrupção voluntária da gravidez

Não sei que razões ponderosas terão levado uma operária de Aveiro a interromper a gravidez e a sujeitar-se a uma curetagem, quiçá com medo de perder o emprego ou, com ele já perdido, receando não poder criar mais um filho.

Foi uma boa acção? – Certamente que não. Também o adultério é um acto perverso e já deixou de ser crime. Também o divórcio é um passo cruel, tantas vezes indesculpável, e não conduz ao cárcere. Também um processo judicial que prescreve, por incúria, é uma ofensa à Justiça e um atropelo aos cidadãos e ninguém é punido.

O que terá levado a PJ e o Ministério Público a perseguirem aquela operária de Aveiro enquanto na costa se descarregava droga? Quem deliberou devassar-lhe a intimidade e obrigá-la ao exame ginecológico enquanto se escolhiam árbitros para jogos de futebol do fim-de-semana seguinte? Quem estabeleceu a prioridade do crime a perseguir?

Aquela operária, com o corpo e a alma doridos, ia de motorizada com o companheiro. Gozasse o conforto de um Mercedes e condutor privativo e ninguém a teria detido. Na Maia, em Setúbal e em Aveiro eram mulheres pobres as que foram julgadas.

A pobreza é mera coincidência. E uma parteira foi presa por tráfico de estupefacientes porque, em vez de minorar as dores, era a sangue frio que devia ter punido as pecadoras.

Perante o crime de mulheres que interrompem a gravidez, porque o feto que trazem no útero é um futuro filho indesejado, não sou capaz de exigir a sua prisão.

Mas, se houver quem as queira prender, se a maioria entender que as mulheres servem apenas para parir e sofrer, tratar da casa e atender o marido, cuidar dos filhos e recusar o prazer, então negam-lhes o direito de ser irmãs, mães, companheiras, filhas e camaradas.

Mas não é num mundo misógino, beato e intolerante que me apraz viver.

2 de Novembro, 2006 Palmira Silva

O referendo ao aborto: dignidade ontológica da Mulher

«Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana» Constituição da República Portuguesa, Artigo 1°.

Com variantes de forma, o reconhecimento da dignidade como valor central dos direitos fundamentais individuais está presente em conteúdo nas Constituições de todos os estados democráticos. De facto, o ordenamento jurídico dos estados modernos – onde não se incluem teocracias, assumidas ou não – erege-se com base na dignidade do Homem, indelevelmente associada aos ideais de liberdade e igualdade em que assenta a nossa sociedade.

O próprio termo «pessoa» é empregue para designar os seres que possuem uma dignidade intrínseca: ser pessoa é ser digno, sendo esta dignidade uma dignidade ontológica, não uma dignidade ética ou moral, isto é, todas as pessoas são igualmente dignas independentemente do seu comportamento ou da sua valoração social, materializando-se essa dignidade no exercício dos direitos invioláveis que lhe são inerentes.

O reconhecimento da dignidade intrínseca do Homem – e «Todos os Homens são iguais … mesmo as Mulheres» (recomendo vivamente este livro de Isabelle Alonso) – como valor fundamental pressupõe assim um sociedade plural, necessariamente laica em que as convicções religiosas/morais individuais, mesmo se maioritárias, devem permanecer no domínio privado já que se transpostas na praxis da polis se traduzem em preconceitos discriminatórios, condicionamentos ou restrições dos direitos fundamentais das minorias intoleráveis num estado moderno e de Direito!

A legislação sobre o aborto actual, um instrumento de punição de «pecados» ou de imoralidades, viola claramente a dignidade intrínseca da Mulher, subordinando-a a uma dignidade moral arbitrária da própria mulher – que passa a ser humilhada em julgamentos de valor – e à dignidade moral que a lei, arbitrariamente também, concede ao embrião.

De facto, ao «proteger» explicitamente o que denomina vida intra-uterina – distinguindo-a da vida extra-uterina, embriões produzidos in vitro – a nossa legislação reconhece que um embrião não tem dignidade intrínseca, não é uma pessoa e não tem direitos! Assim, não é respeitada a dignidade da Mulher, como consta na Constituição, e esta está actualmente sujeita à arbitrariedade do Estado! Estado que supostamente se baseia no respeito dessa dignidade e na defesa do indivíduo e dos seus direitos inalienáveis, que incluem o direito à saúde e à autodeterminação!

Os posts anteriores sobre ética e direito mostram claramente que a questão da despenalização do aborto não é uma questão moral, mas sim legal. A penalização do aborto, tal como está enquadrada, é completamente incompatível com os axiomas que se defendem actualmente na comunidade do Direito para além de ser, em minha opinião, inconstitucional!

Para além dos fundamentalistas católicos – que não reconhecem direitos, a que chamam «exigências ‘para ela mesma’», à mulher e reclamam para o genoma humano, em todas as formas, células estaminais, pré-embrião e embrião, o estatuto de pessoa, embora não assumam publicamente que querem tratar as mulheres que abortam como assassinas- os (muito poucos) restantes opositores à despenalização do aborto recorrem a argumentos morais que implicitamente não reconhecem dignidade intrínseca à Mulher.

De facto, embora reconhecendo que o embrião não é uma pessoa e que extra uterinamente não tem qualquer valor ou direito, se implantado num útero – uma versão nova da máxima escolástica tota mulier in utero (a mulher resume-se ao seu útero) – os seus direitos morais sobrepõem-se aos direitos intrínsecos da mulher mercê um raciocínio logicamente inválido, um apelo falacioso à potencialidade do embrião que, estranhamente, só se aplica in utero.

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(continua)
1 de Novembro, 2006 jvasco

5 perguntas para os cristãos

1- O cão do teu vizinho matou o teu filho. Destas hipóteses, o que escolherias fazer, caso pudesses:

a) Apesar de toda a tristeza, nada fazer
b) Matar o cão
c) Torturar o cão durante um dia e então matá-lo
d) Torturar o cão por toda a eternidade

2- Enquanto Pai que ama os seus filhos, deste-lhes liberdade quanto às suas crenças religiosas. Um torna-se cristão, outro islâmico, outro wicca, outro budista e outro ateu. Só um deles acredita no mesmo que tu. Como tratarias os outros 4 filhos?

a) Matá-los-ias?
b) Deserdá-los-ias?
c) Aceitá-los-ias respeitando a sua crença
d) Tortulá-los-ias por toda a eternidade?

3- Se tivesses uma mensagem de extrema importância, e quisesses que alcançasse o maior público possível, como farias?

a) Enviá-la-ias quando existisse comunicação de massas e imprensa
b) Farias com que o teu mensageiro não escrevesse nada, confiando nos outros para a passarem de forma precisa, sem a distorcerem
c) Certificar-te-ias que a tua mensagem seria escrita de forma dúbia, confusa, e aparentemente contraditória, para maximizares a probabilidade de gerar más interpretações
d) Escreverias uma mensagem clara e não contraditória e enviá-la-ias numa altura em que existisse comunicação de massas e imprensa

4- Como lidarias com pessoas a quem não chegou a tua mensagem, não a tivessem entendido, ou não tivessem acreditado, visto ela ser tão obscura, confusa e aparentemente contraditória?

a) Matá-las-ias
b) Tortulá-las-ias
c) Deixá-las-ias em angústia e sofrimento por toda a eternidade
d) Compreende-las-ias, e perdoá-las-ias

5- Se fosses um ser omnipotente mas invisível, e quisesses ter a certeza que que as pessoas acreditariam ti, o que farias para que isso acontecesse?

a) Escreverias a tua mensagem, em hebraico, na face da lua, numa altura de comunicação de massas e imprensa
b) Farias coisas que não pudessem ter explicação natural, como acabar com a fome no mundo repentinamente
c) Protegerias e recompensarias aqueles que acreditassem em ti, ignorando as preces daqueles que não acreditassem
d) Permanecerias sempre invisível e indetectável, e não mostrarias qualquer favoritismo no atendimento às preces, as quais seriam indistinguíveis da sua ausência

Sim, Deus tem razões que a razão desconhece, mas isso parece uma desculpa tão conveniente para que se acredite em qualquer disparate…
Eu prefiro confiar na razão do que no clero.

Nota- artigo descaradamente baseado neste vídeo do youtube:

1 de Novembro, 2006 Palmira Silva

Referendo ao aborto: ontologia do embrião I

A legislação actual sobre o aborto, que assenta na protecção do bem jurídico «vida intra-uterina» – em que esta vida intra-uterina se refere apenas ao embrião ou feto e contra a qual é apenas possível atentar a título doloso e não, como em relação à vida humana, a título negligente – foi estabelecida como um compromisso, inaceitável num estado laico, entre as ululações da Igreja e seus representantes – que carpem ser um genoma equivalente a uma pessoa – e o que é implicitamente aceite por todos, menos os fanáticos cristãos: o embrião não é uma pessoa!

Só faz sentido criminalizar o aborto após atribuição de um estatuto jurídico ao embrião/feto equivalente ao de uma pessoa, não como protecção de uma vaga e cientificamente imprecisa «vida intra-uterina». Estatuto que deve resultar da discussão da sua natureza, ou seja, de uma discussão ética/ontológica e não deve ser contaminado por considerações religiosas/morais.

Se após essa discussão se concluir que o embrião é de facto uma pessoa então, em minha opinião, para ser coerente com esse estatuto, a legislação nacional deve ser alterada para tratar igualmente a vida e a tal vida intra-ulterina. Ou seja, não só o quadro penal deve ser alterado – sendo as penas para o aborto iguais às correspondentes para o homícido – como deve ser contemplado o atentado negligente contra a vida do que se chegou à conclusão ser uma pessoa.

E apenas deve ser permitido o abortamento de embriões/fetos em caso de risco de vida para a mulher ou embrião/feto! E, claro, deve ser proibido o «assassínio» de embriões produzidos in vitro, isto é, o estatuto do embrião tem de ser um estatuto intrínseco, ontológico, que reflicta o que consideramos ser a natureza do embrião e como tal deve ser independente da forma como foi produzido.

Caso contrário os argumentos a favor da penalização não são sérios, são argumentos assentes não na natureza do embrião mas em preconceitos referentes à forma como ele foi obtido, ou seja, ao sexo, ou em preconceitos de género!

Se, pelo contrário, se concluir que um embrião não é uma pessoa então não faz sentido criminalizar o aborto! Porque criminalizar o abortamento de algo que se reconhece não ser uma pessoa significa apenas que a nossa não é uma sociedade assente no respeito dos direitos do Homem mas em que se respeitam apenas os direitos do homem!

Isto é, uma sociedade em que a mulher não é considerada uma pessoa de plenos direitos, uma sociedade que continua refém de um paradigma católico mariano, em que se ulula contra «um certo discurso feminista» que «reivindica exigências ‘para ela mesma’». Em que se argumenta falaciosamente sobre «motivações egoístas» das mulheres, ou seja, se utilizam julgamentos de valor sobre as motivações de uma mulher que resolve abortar algo que se reconhece não ser uma pessoa para justificar a punição dos sub-humanos que, horror dos horrores, pensem em si como pessoas e não como «propriedade pública»!

Como refere Conceição Branco, num artigo que recomendo vivamente, «Não será certamente por acaso que, numa posição de condenação sobre o aborto, os argumentos [da Igreja Católica] afunilem no adultério, apontado como um pecado feminino, enquanto os homens ficam à margem, escapam ao estigma».

Para ser séria, racional, objectiva e em concordância com os valores que se protesta serem os nossos, a discussão sobre a despenalização do aborto deve ser despida de todos os preconceitos e falácias sortidos com que normalmente é colorida, assentando no que de facto está em causa: um embrião deve ou não ser considerado uma pessoa de plenos direitos? Qual o estatuto ontológico em que devemos assentar o estatuto jurídico a conferir ao embrião?

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(continua)