Referendo à talibanização nacional
Como há muito alertamos, a conjuntura internacional que vivemos torna as populações vulneráveis aos ataques dos fundamentalistas de todas as religiões. Um pouco por todo o Ocidente, assistimos a um ataque sem tréguas das várias versões do cristianismo aos valores em que assenta a nossa sociedade democrática, tolerante e supostamente laica. Valores humanistas desde sempre especialmente combatidos pela Igreja de Roma.
Para além de unidos pelo ódio aos que não se subjugam aos ditames neolíticos do cristianismo, os responsáveis eclesiásticos de todos os flavours do cristianismo estão igualmente unidos na responsabilização da laicidade na crise que atravessamos. Crise que, paradoxalmente, tem na sua génese exactamente a panaceia que recomendam: o fundamentalismo religioso!
Por outro lado, os moderados de todas as fés desculpam por norma os excessos cometidos em nome da respectiva religião, já que confundem fanatismo e fundamentalismo com convicção ou coerência religiosas. Aliás, numa das suas homilias de segunda o nosso cavaleiro da pérola redonda, o J.C. das Neves que não faz a mínima ideia o que seja tolerância, ululava contra a laicidade e o oxímoro «fanatismo laico», carpindo serem os «fanáticos religiosos» «desequilibrados mas fiéis à sua fé» enquanto os tais «fanáticos laicistas» – que segundo o spin doctor do catolicismo mais ultramontano elegeram a tolerância como dogma – são «inconsistentes» já que não «toleram» ser regidos pelas patetadas debitadas como «valores radicados na natureza mesma do ser humano».
Os exemplos que nos chegam de todo o mundo e de todas as confissões religiosas indicam claramente que precisamos despertar desta complacência e não transigir no mínimo desvio à laicidade! A defesa da laicidade é de facto absolutamente essencial para que não assistamos ao retrocesso civilizacional que as diferentes versões do cristianismo querem impor nos países onde são maioritárias, com constantes ululações de «blasfémias» e afins, pressões políticas e mediáticas, e uma inadmíssivel imiscuição no Direito desses países!
Como o filósofo Sam Harris explica, a atitude complacente em relação às religiões é uma ameaça latente para o modelo de sociedade que queremos construir, uma sociedade tolerante assente em princípios democráticos e na defesa dos direitos do Homem.
Ameaça latente que cá no burgo se vai explicitar muito em breve, já que Portugal vai referendar não apenas a IVG mas igualmente a influência da delegação nacional da Igreja de Roma na esfera política! Apenas os mais distraídos – ou os mais ingénuos – ainda não se aperceberam que o desmesurado empenhamento da ICAR e seus apaniguados no referendo que se aproxima não reflecte qualquer «defesa intransigente da vida» mas sim uma defesa intransigente do poder político da Igreja!
Trinta anos passados sobre o 25 de Abril e acabada a travessia do deserto que a promiscuidade entre a ditadura e a Igreja impôs no Portugal democrático, os representantes mais fanáticos do catolicismo jurássico metralham em força os seus dislates nos orgãos da comunicação social nacional para recuperar o integrismo perdido na revolução dos cravos.
Não tenhamos ilusões: o referendo ao aborto não o é de facto. Não há qualquer razão objectiva, biológica, ética ou de Direito, para criminalizar a IVG. Há apenas arrogância católica explícita nos muitos vociferadores em nome de Deus que consideram legítima a criminalização dos «pecados» e condicionamento social católico naqueles que rejeitam motivação religiosa para a sua objecção ao livre arbítrio sobre o tema.
Assim, o que vamos decidir nas mesas de voto é o modelo de sociedade que queremos seja a nossa, isto é, o que vamos referendar é apenas se queremos a talibanização de Portugal!
Ninguém pense que se os pró-prisão vencerem o referendo a Igreja se contenta com tão pouco! O referendo é um teste que se ultrapassado será apenas o primeiro passo para a regressão civilizacional ao totalitarismo católico medieval por que o Vaticano tanto almeja!
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