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Referendo ao aborto: ontologia do embrião I

A legislação actual sobre o aborto, que assenta na protecção do bem jurídico «vida intra-uterina» – em que esta vida intra-uterina se refere apenas ao embrião ou feto e contra a qual é apenas possível atentar a título doloso e não, como em relação à vida humana, a título negligente – foi estabelecida como um compromisso, inaceitável num estado laico, entre as ululações da Igreja e seus representantes – que carpem ser um genoma equivalente a uma pessoa – e o que é implicitamente aceite por todos, menos os fanáticos cristãos: o embrião não é uma pessoa!

Só faz sentido criminalizar o aborto após atribuição de um estatuto jurídico ao embrião/feto equivalente ao de uma pessoa, não como protecção de uma vaga e cientificamente imprecisa «vida intra-uterina». Estatuto que deve resultar da discussão da sua natureza, ou seja, de uma discussão ética/ontológica e não deve ser contaminado por considerações religiosas/morais.

Se após essa discussão se concluir que o embrião é de facto uma pessoa então, em minha opinião, para ser coerente com esse estatuto, a legislação nacional deve ser alterada para tratar igualmente a vida e a tal vida intra-ulterina. Ou seja, não só o quadro penal deve ser alterado – sendo as penas para o aborto iguais às correspondentes para o homícido – como deve ser contemplado o atentado negligente contra a vida do que se chegou à conclusão ser uma pessoa.

E apenas deve ser permitido o abortamento de embriões/fetos em caso de risco de vida para a mulher ou embrião/feto! E, claro, deve ser proibido o «assassínio» de embriões produzidos in vitro, isto é, o estatuto do embrião tem de ser um estatuto intrínseco, ontológico, que reflicta o que consideramos ser a natureza do embrião e como tal deve ser independente da forma como foi produzido.

Caso contrário os argumentos a favor da penalização não são sérios, são argumentos assentes não na natureza do embrião mas em preconceitos referentes à forma como ele foi obtido, ou seja, ao sexo, ou em preconceitos de género!

Se, pelo contrário, se concluir que um embrião não é uma pessoa então não faz sentido criminalizar o aborto! Porque criminalizar o abortamento de algo que se reconhece não ser uma pessoa significa apenas que a nossa não é uma sociedade assente no respeito dos direitos do Homem mas em que se respeitam apenas os direitos do homem!

Isto é, uma sociedade em que a mulher não é considerada uma pessoa de plenos direitos, uma sociedade que continua refém de um paradigma católico mariano, em que se ulula contra «um certo discurso feminista» que «reivindica exigências ‘para ela mesma’». Em que se argumenta falaciosamente sobre «motivações egoístas» das mulheres, ou seja, se utilizam julgamentos de valor sobre as motivações de uma mulher que resolve abortar algo que se reconhece não ser uma pessoa para justificar a punição dos sub-humanos que, horror dos horrores, pensem em si como pessoas e não como «propriedade pública»!

Como refere Conceição Branco, num artigo que recomendo vivamente, «Não será certamente por acaso que, numa posição de condenação sobre o aborto, os argumentos [da Igreja Católica] afunilem no adultério, apontado como um pecado feminino, enquanto os homens ficam à margem, escapam ao estigma».

Para ser séria, racional, objectiva e em concordância com os valores que se protesta serem os nossos, a discussão sobre a despenalização do aborto deve ser despida de todos os preconceitos e falácias sortidos com que normalmente é colorida, assentando no que de facto está em causa: um embrião deve ou não ser considerado uma pessoa de plenos direitos? Qual o estatuto ontológico em que devemos assentar o estatuto jurídico a conferir ao embrião?

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(continua)

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