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A Igreja Católica e a Vida Humana

Nestes tempos de intenso debate nacional a propósito do referendo sobre a despenalização do aborto, é notória a profunda dissensão a que se assiste na sociedade portuguesa entre os defensores do “sim” e os defensores do “não”.

As divergências políticas estão já marcadas: depois do Primeiro-ministro José Sócrates se ter afirmado publicamente a favor do «sim», apareceu Marques Mendes a dizer que votará «não», numa posição que pretende nitidamente não mais do que uma demarcação política e partidária.
Depois, aparece a Igreja Católica mais uma vez a meter o bedelho e a querer influenciar a sociedade e a vida das pessoas, quer sejam católicas quer não o sejam.
Pela voz de José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa, a Igreja Católica é muito clara a explicar a sua posição:
«…desde o seu início, a Igreja condenou o aborto, porque considera que desde o primeiro momento da concepção, existe um ser humano, com toda a sua dignidade, com direito a existir e a ser protegido».
E vai mais longe quando esclarece que:
«… a condenação do aborto não é uma questão religiosa, mas de «ética fundamental»; trata-se, de facto, de um valor universal, o direito à vida, exigência da moral natural…».
Assim, e defendendo a vida humana como um valor inquestionavelmente absoluto, ao mesmo tempo que considera que desde o primeiro momento da concepção existe já uma vida humana, a Igreja Católica assume uma pretendida coerência de ser contra o aborto.
A vida humana é um valor absoluto, e ponto final!
De tal forma, que a Igreja Católica é inequivocamente contra qualquer forma de aborto.
Mesmo nos casos (previstos na lei actualmente vigente em Portugal) de malformação do feto, de violação ou de perigo de vida para a mulher, a Igreja Católica tem sempre a mesma posição: é contra o aborto.
É assim que (admitamos que muito coerentemente), esse repositório básico da «Doutrina Oficial da Igreja Católica», dos «valores judaico-cristãos» da civilização ocidental, essa fonte de «ética fundamental» que é o «Catecismo da Igreja Católica», pune com a pena de excomunhão «latae sententiae», isto é, pela prática do próprio facto, tanto a mulher que pratica um aborto, como também quem a tenha auxiliado.
Como podia ser de outra maneira: pois não é a vida humana um valor fundamental e absoluto para a Igreja Católica?
Pois. Mas o pior é que não é!
É que enquanto afirma que «a vida humana deve ser respeitada e protegida de maneira absoluta a partir do momento da concepção», e que «desde o primeiro momento de sua existência o ser humano deve ver reconhecidos os seus direitos de pessoa, entre os quais o direito inviolável de todo o ser inocente à vida», esse mesmo tal «Catecismo da Igreja Católica» afirma a propósito da «legítima defesa»:
«Quem defende sua vida não é culpável de homicídio, mesmo se for obrigado a matar o agressor».
Isto explicado melhor quer dizer que a doutrina católica, a tal «ética fundamental» a que se referia o Cardeal Patriarca e tão bem explicada no «Catecismo», nos diz que quando estão em confronto as vidas humanas de um agressor e de um agredido, privilegia-se este último e legitima-se o seu direito a defender-se e a matar o agressor, isto é, a tirar-lhe o tal «valor absoluto» que é sua a vida humana.
Mas quando uma gravidez põe em perigo a vida de uma mulher, não lhe é concedido o direito a abortar.
Desta vez privilegia-se um embrião, a quem se «concedeu» vida logo desde o primeiro momento da concepção, e recusa-se à mulher o direito à sua própria vida, à mesma «legítima defesa» que antes se concedeu a um indivíduo ou a uma sociedade que foram «agredidos».
Uma vez mais, e como ao longo da História tem sido persistente tradição da Igreja Católica, a mulher é tratada como um «objecto» de segunda categoria, e nem sequer a sua vida humana constitui já um «valor absoluto» assim tão fundamental que, quando em confronto, justifique a destruição de um embrião, passe este ou não de um conjunto de meia dúzia de células sem sistema nervoso, estejamos ou não perante uma malformação do feto, seja este ou não resultado de uma violação da mulher.
Mas esta ignóbil hipocrisia da Igreja Católica não fica por aqui:
Enquanto fala no valor absoluto da vida humana a propósito de um embrião, a mesma Igreja Católica Apostólica Romana defende no seu Catecismo… a pena de morte!
Como diz o «Catecismo da Igreja Católica» (§ 2267):
«A legítima autoridade pública tem o direito e o dever de infligir penas proporcionais à gravidade do delito».
«O ensino tradicional da Igreja não exclui, depois de comprovadas cabalmente a identidade e a responsabilidade de culpado, o recurso à pena de morte, se essa for a única via praticável para defender eficazmente a vida humana contra o agressor injusto».
É de facto muito curiosa uma religião que admite a pena de morte!
É de facto muito curioso que haja alguém que ora defende os valores éticos e absolutos da vida humana quando fala de um embrião, para logo a seguir esquecer essa mesma «ética fundamental» quando fala de uma pessoa adulta e admite que os seus semelhantes lhe tirem a vida, esse tal «valor absoluto», como castigo por uma acção por si praticada.
Que haja quem defenda o «sim» e o «não» à despenalização do aborto, isso entendo perfeitamente.
Por isso é que haverá um referendo onde todos devem ter o direito de votar em liberdade e de acordo com a sua consciência.
Mas já não compreendo a profunda hipocrisia e a inqualificável desonestidade intelectual de quem, por se intitular católico e por isso se achar dotado de uma superioridade «ética fundamental», ora se manifesta contra a despenalização do aborto em nome do «valor absoluto» da vida de um embrião, ora, orgulhando-se de pertencer a essa tenebrosa associação que é a Igreja Católica Apostólica Romana, é também e ao mesmo tempo favorável à pena de morte!

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)

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