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O iluminismo, uma visão não linear

Ao processo que começa com Descartes e que prossegue ao longo do século XVII e XVIII, que deu origem a uma revolução no esquema mental até do habitante europeu mais desligado da vida intelectual e política, dá-se o nome de iluminismo mas o fenómeno não possui uma lógica de evolução linear ou sequer dualista. De facto o iluminismo foi construído através de um esquema triangular, da interacção de 3 movimentos e conceitos diferentes, representados grupos muito distintos.

Os radicais, que queriam aplicar a razão de forma sistemática e universal a toda a realidade, formavam uma minoria em termos de números e poder social (muitas das suas publicações eram feitas ilegalmente à revelia das autoridades reais e eclesiásticas e estavam quase universalmente excluídos do sistema de ensino) mas tiveram um poder formativo na sociedade desproporcional ao que seria de esperar – em parte devido às inconsistências dos que defendiam as posições intermédias e às insuficiências gritantes dos que se lhes opunham frontalmente. As ideias cruciais sobre igualdade, secularização do estado e naturalismo que partilhamos hoje no mundo ocidental foram essencialmente propostas por este grupo que teve por principais vozes e influências: Epicuro, os estóicos clássicos, Maquiavel, Espinoza, Bayle, Fontenelle, Diderot, D’Alembert, Helvétius, D’Holbach entre outros.

Os moderados, ou o grupo que procurava reconciliar a razão e um deus mais ou menos tradicional e com as normas sociais vigentes. Este grupo representaria a maioria dos intelectuais que já não podiam aceitar a arbitrariedade de uma visão do Homem que era completamente teológica mas que não estavam dispostos a abraçar completamente os novos conceitos. Esta corrente de iluminismo “moderado”, que saiu profundamente derrotada já que foram os ideias dos radicais que prevaleceram (a coexistência da fé e da razão a um mesmo nível provou ser um projecto inundado de contradições e compartimentalizações que desafiavam os mais coerentes), era essencialmente caracterizada por uma anglofilia sendo que o seu esquema seguia a corrente dos seguintes pensadores: Bacon, Boyle, Locke, Newton, Montesquieu, Voltaire e Hume. Para suprema ironia muitas das propostas e métodos de alguns dos pensadores do iluminismo moderados foram absorvidas pela corrente radical – por exemplo: o empirismo de Hume foi absorvido pela corrente radical mas não as opiniões do autor sobre a sociedade, desigualdade racial e tradição.

O último grupo é o que os historiadores chamaram “contra-iluminismo”. Um conjunto de ideias que essencialmente limitava-se à reacção face às novas propostas radicais e á reafirmação da tradição, obediência à autoridade (monárquica e religiosa) e à prevalência da fé face a qualquer método de investigação sobre a realidade. Apesar de este grupo deter praticamente o monopólio do poder durante a maior parte dos séculos XVII e XVIII foi perfeitamente incapaz de responder ás questões levantadas pelo esprit philosophique. Muito depois de os seus edifícios ideológicos terem sido derrubados e do pensamento de Descartes e principalmente de Espinoza terem sido levados às suas consequências lógicas ainda tinham medo de falar abertamente do Espinosismo – Durante décadas todos os defensores da cristandade tiveram de tal modo pavor a Espinoza e ás suas ideias que não se atreviam a escrever o seu nome, fazendo sempre alusão às suas ideias gerais (com o propósito de as rebater) sem o mencionar directamente.

Através deste conflito entre três sectores, ou mais correctamente, da interacção entre radicais e moderados e com a oposição dos conservadores, nascia um conjunto de filosofias e ideias que seriam a base do que hoje se chama a sociedade ocidental moderna.

Dado o ambiente gerado pelas monarquias absolutas que reinavam na maior parte da Europa ser um radical (e em países oficialmente católicos até ser um moderado) era oferecer-se a represálias brutais por parte das autoridades e por isso durante mais de um século todos as publicações de cariz naturalista, materialista ou republicano eram feitas ilegalmente com grande risco por parte dos autores e dos editores. Ao longo deste tempo, e apesar das perseguições, estabelece-se uma comunidade intelectual marginal que viria a ser a pedra central de todo o edifício da modernidade. Inicialmente centrada nas recém liberadas (do domínio espanhol) Províncias Unidas Holandesas e em menor escala na Inglaterra estas ideias seriam disseminadas por toda a Europa começando pela França que viria a tornar-se o centro intelectual das luzes durante o século XVIII e mesmo XIX.

[artigo publicado também no InBetween]

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