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A Razão e a Fé I: A Igreja e a Razão

A fé religiosa, ao contrário do que alguns religiosos nos querem fazer crer, é inassociável à Razão. A ideia peregrina de que a Razão não se opõe à Fé é constantemente publicitada – sempre por pessoas de fé e quase nunca por pessoas sem fé. Este enviesamento é curioso e é também curiosa a posição das religiões, nomeadamente a ICAR, ao promoverem essa ideia.

A oposição entre Fé e Razão tem duas componentes distintas. Uma componente histórica, relativa à dinâmica de poder da religião instituída e uma componente filosófica, independente do tempo e da geografia, que diz respeito à crítica da estrutura lógica e ontológica do teísmo. Estas duas perspectivas aparecem separadas a maior parte do tempo mas houve períodos na História da Europa em que interagiram.

O debate começa há milhares de anos e é provavelmente tão antigo como as próprias religiões. Ao contrário do que muitas vezes se apregoa, o ateísmo e o agnosticismo encontram expressão entre os primeiros filósofos gregos o que sugere que a ausência de fé é tão velha como a própria fé. A recusa da fé começa sempre no exercício do raciocínio e os argumentos ateístas e agnósticos são clássicos – tratam-se de argumentos refutativos transversais aos credos e cuja evolução se prende exclusivamente com a adaptação expressiva a credos emergentes e novas concepções do divino ou do sagrado.

Em termos históricos e no caso europeu, a problemática da Razão e da Fé começa com a escolástica e com a sua tentativa de forçar o acordo entre o saber clássico e a verdade revelada. O resultado dessa mistura foi a visão medieval peripatética ou neoplatónica que, imutável e absoluta, ocupou cerca de mil anos da História da Europa. Assim, desde Agostinho de Hipona até ao séc. XV, a Razão estava confinada ao que a classe religiosa determinava. Considerando-se que não podia haver contradições entre a revelação divina e o que a razão determina, sendo que essa revelação era sagrada e exprimia a Verdade, a Razão tinha claramente de se submeter à Fé nos pontos de atrito.

A História da Europa a partir daí até quase à contemporaneidade, nas suas grandes evoluções, envolve sempre de alguma forma o inverter gradual dessa ordem. E a inversão começa com o Renascimento. No fundo, o renascimento da dúvida depois de toda a Idade Média em que a autoridade dos clássicos não era questionada. A Reforma foi parte desse processo de dúvida, no caso a que me refiro em relação à autoridade papal e da Igreja. As Escrituras foram relidas e novamente interpretadas fazendo um uso do raciocínio individual que deu origem a leituras diferentes. As várias seitas que assim se formaram pela Europa fora, para mal da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR), ganharam independência intelectual. Apesar de serem tempos conturbados e de ainda haver perseguição religiosa, um pouco no seguimento da tradição anterior, havia no entanto uma certa frescura no simples facto de haver agora mais liberdade de pensamento. Enquanto a Igreja se ocupava de contrariar essa tendência, tão negativa para o seu poder, as pessoas começavam a recuperar os clássicos. A Igreja perdeu com isso. Veio a perder a Inglaterra e parte dos estados do continente. Na origem dessa infame dissidência esteve, no fundo, a liberdade de pensamento.

Também publicado no Banqueiro Anarquista.

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